Tenho que agradecer à livraria Bertrand que me possibilitou tudo isto. E à Papiro que foi quem me editou o livro. À Agrireal por se ter associado à edição deste livro. E ao meu professor Henrique Morgado. Porque as palavras dele são Salva e Mirra e Torga. E porque me comoveu. Como e quanto me comoveu. Porque me fez elevar até às estrelas e voltar de novo agora para vos falar. E só espero estar à altura para dizer o que hoje preciso de vos dizer.
Os sons mergulham em mim e ecoam enquanto loucos sem que eu seja capaz de os segurar. O brilho das faces que são as vossas olha e mira e está aí, estão aí, todos, rendidos heróis, olhando e galgando fronteiras. E eu persigo o sonho que me consome e me amarra a esta cadeira. Sonho o sonho que me inquieta e me apoquenta. Esse sonho é para mim o código sagrado onde eu quero marcar com ferro em brasa. É o meu código e o meu desgraçado destino. E as minhas palavras minhas são tudo o que possuo. Nada mais quero alcançar senão a cristalinidade das palavras e a beleza intemporal que elas deixam quando plantadas. Numa vida que vive a queimar e numa fraga maldita onde eu sinto frio e o incómodo de continuar vivendo deixando os pés de fora enquanto a cabeça galga as estrelas da fronteira do meu sonho. Do meu código.
Deve haver algures quem me entenda. Algures haverá quem fale e sinta e pense como eu. Nalguma encruzilhada algum outro louco carregando semblantes que se nunca alteram. Tudo o que eu quero é companhia para uma tertúlia onde pudéssemos falar e falar sem tempo sobre as poesias e sobre os livros que te ensombram. Mas o que eu tenho, o que eu sinto em meio de mim são as faces que se transformaram em cera. Que nada podem, que nada nunca alcançam, que vão mirrando a cada instante. Faces de frio e desatenção. Faces feias e inertes. Perdeu-se o riso e a vida humana voltou-se do avesso. Cultivamos e acarinhamos anti-heróis, aspergimos o ar envenenado com que morreremos amanhã. E eis que se erguem majestosos e omnipotentes os espectros da escuridão e da solidão. Porque depois do fim restará ao homem contemplar-se a si próprio, numa horrível e dantesca visão de si. O eu imperfeito e devorador do bem. Porque deixamos paulatinamente de ver e sentir. Deixamos de labutar e de lutar. Numa palavra só. Solidão. O homem que se perde num mar de dúvidas porque deixou de sonhar. Não tem desígnios elevados. E então voltam as saudades da minha meninice. Então voltam as saudades da liberdade que eu imaginava nas nuvens. Volta o passado e inundam-me as memórias. E olho em volta e vejo as ruínas do país que não sinto como meu. Olho e sinto a fruição do fátuo e do passageiro no rosto do meu amigo desempregado. No rosto esquálido do meu irmão prostrado. Observo e quase fecho os olhos perante a indiferença com que tu viras as costas ao teu melhor amigo. E o que se passa com o teu amigo passa-se também com o teu país e a tua bandeira. Que esqueces ao vento e à chuva do inferno dos costumes que teimas em querer manter e sustentar.
Ao cabo da minha meia vida dou por mim surpreso porque me conseguiram fazer professor. E olho em busca dos meus alunos e descubro que tantos estão nesta sala comigo. E é aí que eu encontro refúgio. É esse o meu abrigo. É essa a minha tábua e o meu maior desígnio. Como eu quereria conseguir fazer deste texto uma ode e uma dádiva aos meus alunos. O que eu não daria para que as palavras soassem como cristais e marcassem como diamantes. Desgraçadamente fizeram-me professor. Entretanto descobri os alunos quando lhes consegui finalmente provocar o riso. E sei que são os meus alunos porque não mais os esquecerei. Tornaram-se perenes na minha montanha de memória. E erguem-se castelos quando me abrigam das intempéries. São as Torgas e os ventos e as imensidões do campo. É deles que me não consigo afastar. É com eles que choro. É por eles que trabalho. E mais não consigo dizer. Mais não posso fazer transparecer com palavras. E então obrigado também a vós. Por me enriquecerem com as vossas risadas. Por me ofertarem as flores do campo e todo o tamanho do ar.
Tenho contado uma pequenina história em cada uma das sessões e em cada local por onde tenho passado. Permiti-me esta última veleidade. Esta chama-se indiferença. E reza da seguinte maneira:
É tão cedo na manhã e o nosso homem acabou de abrir os olhos. Rapidamente e cheio de fortes abalos interiores, cheio de sobressaltos e tanto lhe dói a cabeça. E num primeiro tropeção não sabia sequer onde estava. Depois ficou impávido e sereno de cabeça bamba olhando o tecto esbranquiçado daquele que seria um quarto. Um qualquer quarto, sem ligação alguma a si, que não nutria amor por ninguém e muito menos qualquer ligação por alguém. Pelo menos que ele assim o sentisse ou que ele julgasse consciente que sim. E talvez daí essa sua impertinência e também essa sua aparente indigência. Com efeito ele sempre sonhou dali se ir e abandonar tudo até ao cabo do mundo. Porém o mundo teimava em não se mover para vir ter com ele. E ele, defeito pernicioso, também se habituara a não se deixar mover.
Ainda tão cedo na manhã e ainda e mais uma vez o nosso herói na senda de um outro dia heróico, olhos suplicantes cravejados no tecto sem forças sequer para mover um dedo e uma cabeça mergulhada em águas frias e monstruosas como o fim do mundo ou o espectro da fome. E um vago sentido de fome da cor das teias de aranha que trazia imersas em si e que eram um símbolo da indiferença que votava ao abandono do homem pelo homem. Ou nem votava e então deixava o papel em branco. Um branco imaculado sem cheiro e asséptico do sentido desta humanidade que se esqueceu da simplicidade e da honestidade.
Após um momento de contracção em que julgou que uma febre imensa o perpassava e sem mais em que pensar julgou ouvir o telefone que gania ali ao perto dele. Arrastou-se da cama para o chão e esgueirou-se pelo chão do quarto até ao canto donde vinha aquele resfolegar de asma. Atendeu e do outro lado pareceu-lhe ouvir uma criança sonhar. Sonhava chorando enquanto um gato se aproximava do beiral do lado de cá, do lado do sol, do lado sereno, do lado da indigência. E o telefone. O que significava ali o telefone? O telefone era o miúdo que gemia do lado de lá, do lado da fome e do lado da desnutrição, a criança que morria sozinha num areal imenso de sílica estéril e a quem lhe iam faltando forças até para mover os maxilares. O telefone foi o chamamento desesperado dessa súbita remissão com que o pequenino corpo se julgou capaz de viver sem comer, sem ter que comer e aquele choro era o menino a chamar a mãe, morta e apodrecida ali mesmo ao lado dele, naquele fundo de deserto, naquele campo de batalha, naquelas terras desnudadas e pobre menino que mais não pode que morrer.
E aqui tão cedo na manhã e o nosso herói ouvindo aterrado aquele choro que não entendia e interrogando-se sobre que mal fizera e a quem punira. Acordara de uma noite agitada e julgando num assombro de prodigalidade ser aquele choro o do seu filho que abandonara havia um mês levou a mão ao bolso e tirou de lá um cheque que enviou pelo telefone. Pelo sim pelo não acrescentou um zero à soma não fosse o miúdo emagrecer ou julgá-lo a ele um sovina incapaz de sentir as birras. E então atirou-lhe o cheque que imediatamente brotou do outro lado da linha, num tântalo lamento que ouviu aquele coração expirar ao fim de uma longa batalha de fome crua e cadavérica. E entretanto, rico, de posse de um papel que lhe garantiria dinheiro para toda a sua vida aquela pobre criança deixou-se morrer, atacada pela cegueira e desesperança. Só a mãe por ele velava, só a mãe hirta e seca, de ossos à mostra e longamente morta ali naquele deserto. Sobreveio a morte e ali ficaram mãe e filho e do lado de cá, do lado do quarto, do lado do nosso herói se reinava o silêncio era porque o cheque havia sido aceite.
Bom moço este meu menino! A mãe é que o estraga com mimos mas também que culpa é a minha se o juiz o quis na casa dela. Atura-o ela mas se foi ela quem o quis, não sei porque me obrigaram a sustentá-los aos dois. E ao dizer isto sentiu as teias que dentro de si pululavam galgarem mais um muro e destruírem mais uma muralha.
Então, já acordado, entrou para o automóvel e fez toda a viagem acompanhado do seu sentido de felicidade porque não negava nada ao filho.
Terminaria, então, aqui e assim, agora sim, agradecendo a vossa presença e deixando o livro para que o possam ver e sentir e para que dele se possam servir, pintalgando-o das cores que vos forem mais simpáticas e também para que o possam julgar, num qualquer lugar, num tempo qualquer, num redemoinho mais e na esteira do tapete das ideias e do sonho.
Muito obrigado então e muito boa noite.
Os sons mergulham em mim e ecoam enquanto loucos sem que eu seja capaz de os segurar. O brilho das faces que são as vossas olha e mira e está aí, estão aí, todos, rendidos heróis, olhando e galgando fronteiras. E eu persigo o sonho que me consome e me amarra a esta cadeira. Sonho o sonho que me inquieta e me apoquenta. Esse sonho é para mim o código sagrado onde eu quero marcar com ferro em brasa. É o meu código e o meu desgraçado destino. E as minhas palavras minhas são tudo o que possuo. Nada mais quero alcançar senão a cristalinidade das palavras e a beleza intemporal que elas deixam quando plantadas. Numa vida que vive a queimar e numa fraga maldita onde eu sinto frio e o incómodo de continuar vivendo deixando os pés de fora enquanto a cabeça galga as estrelas da fronteira do meu sonho. Do meu código.
Deve haver algures quem me entenda. Algures haverá quem fale e sinta e pense como eu. Nalguma encruzilhada algum outro louco carregando semblantes que se nunca alteram. Tudo o que eu quero é companhia para uma tertúlia onde pudéssemos falar e falar sem tempo sobre as poesias e sobre os livros que te ensombram. Mas o que eu tenho, o que eu sinto em meio de mim são as faces que se transformaram em cera. Que nada podem, que nada nunca alcançam, que vão mirrando a cada instante. Faces de frio e desatenção. Faces feias e inertes. Perdeu-se o riso e a vida humana voltou-se do avesso. Cultivamos e acarinhamos anti-heróis, aspergimos o ar envenenado com que morreremos amanhã. E eis que se erguem majestosos e omnipotentes os espectros da escuridão e da solidão. Porque depois do fim restará ao homem contemplar-se a si próprio, numa horrível e dantesca visão de si. O eu imperfeito e devorador do bem. Porque deixamos paulatinamente de ver e sentir. Deixamos de labutar e de lutar. Numa palavra só. Solidão. O homem que se perde num mar de dúvidas porque deixou de sonhar. Não tem desígnios elevados. E então voltam as saudades da minha meninice. Então voltam as saudades da liberdade que eu imaginava nas nuvens. Volta o passado e inundam-me as memórias. E olho em volta e vejo as ruínas do país que não sinto como meu. Olho e sinto a fruição do fátuo e do passageiro no rosto do meu amigo desempregado. No rosto esquálido do meu irmão prostrado. Observo e quase fecho os olhos perante a indiferença com que tu viras as costas ao teu melhor amigo. E o que se passa com o teu amigo passa-se também com o teu país e a tua bandeira. Que esqueces ao vento e à chuva do inferno dos costumes que teimas em querer manter e sustentar.
Ao cabo da minha meia vida dou por mim surpreso porque me conseguiram fazer professor. E olho em busca dos meus alunos e descubro que tantos estão nesta sala comigo. E é aí que eu encontro refúgio. É esse o meu abrigo. É essa a minha tábua e o meu maior desígnio. Como eu quereria conseguir fazer deste texto uma ode e uma dádiva aos meus alunos. O que eu não daria para que as palavras soassem como cristais e marcassem como diamantes. Desgraçadamente fizeram-me professor. Entretanto descobri os alunos quando lhes consegui finalmente provocar o riso. E sei que são os meus alunos porque não mais os esquecerei. Tornaram-se perenes na minha montanha de memória. E erguem-se castelos quando me abrigam das intempéries. São as Torgas e os ventos e as imensidões do campo. É deles que me não consigo afastar. É com eles que choro. É por eles que trabalho. E mais não consigo dizer. Mais não posso fazer transparecer com palavras. E então obrigado também a vós. Por me enriquecerem com as vossas risadas. Por me ofertarem as flores do campo e todo o tamanho do ar.
Tenho contado uma pequenina história em cada uma das sessões e em cada local por onde tenho passado. Permiti-me esta última veleidade. Esta chama-se indiferença. E reza da seguinte maneira:
É tão cedo na manhã e o nosso homem acabou de abrir os olhos. Rapidamente e cheio de fortes abalos interiores, cheio de sobressaltos e tanto lhe dói a cabeça. E num primeiro tropeção não sabia sequer onde estava. Depois ficou impávido e sereno de cabeça bamba olhando o tecto esbranquiçado daquele que seria um quarto. Um qualquer quarto, sem ligação alguma a si, que não nutria amor por ninguém e muito menos qualquer ligação por alguém. Pelo menos que ele assim o sentisse ou que ele julgasse consciente que sim. E talvez daí essa sua impertinência e também essa sua aparente indigência. Com efeito ele sempre sonhou dali se ir e abandonar tudo até ao cabo do mundo. Porém o mundo teimava em não se mover para vir ter com ele. E ele, defeito pernicioso, também se habituara a não se deixar mover.
Ainda tão cedo na manhã e ainda e mais uma vez o nosso herói na senda de um outro dia heróico, olhos suplicantes cravejados no tecto sem forças sequer para mover um dedo e uma cabeça mergulhada em águas frias e monstruosas como o fim do mundo ou o espectro da fome. E um vago sentido de fome da cor das teias de aranha que trazia imersas em si e que eram um símbolo da indiferença que votava ao abandono do homem pelo homem. Ou nem votava e então deixava o papel em branco. Um branco imaculado sem cheiro e asséptico do sentido desta humanidade que se esqueceu da simplicidade e da honestidade.
Após um momento de contracção em que julgou que uma febre imensa o perpassava e sem mais em que pensar julgou ouvir o telefone que gania ali ao perto dele. Arrastou-se da cama para o chão e esgueirou-se pelo chão do quarto até ao canto donde vinha aquele resfolegar de asma. Atendeu e do outro lado pareceu-lhe ouvir uma criança sonhar. Sonhava chorando enquanto um gato se aproximava do beiral do lado de cá, do lado do sol, do lado sereno, do lado da indigência. E o telefone. O que significava ali o telefone? O telefone era o miúdo que gemia do lado de lá, do lado da fome e do lado da desnutrição, a criança que morria sozinha num areal imenso de sílica estéril e a quem lhe iam faltando forças até para mover os maxilares. O telefone foi o chamamento desesperado dessa súbita remissão com que o pequenino corpo se julgou capaz de viver sem comer, sem ter que comer e aquele choro era o menino a chamar a mãe, morta e apodrecida ali mesmo ao lado dele, naquele fundo de deserto, naquele campo de batalha, naquelas terras desnudadas e pobre menino que mais não pode que morrer.
E aqui tão cedo na manhã e o nosso herói ouvindo aterrado aquele choro que não entendia e interrogando-se sobre que mal fizera e a quem punira. Acordara de uma noite agitada e julgando num assombro de prodigalidade ser aquele choro o do seu filho que abandonara havia um mês levou a mão ao bolso e tirou de lá um cheque que enviou pelo telefone. Pelo sim pelo não acrescentou um zero à soma não fosse o miúdo emagrecer ou julgá-lo a ele um sovina incapaz de sentir as birras. E então atirou-lhe o cheque que imediatamente brotou do outro lado da linha, num tântalo lamento que ouviu aquele coração expirar ao fim de uma longa batalha de fome crua e cadavérica. E entretanto, rico, de posse de um papel que lhe garantiria dinheiro para toda a sua vida aquela pobre criança deixou-se morrer, atacada pela cegueira e desesperança. Só a mãe por ele velava, só a mãe hirta e seca, de ossos à mostra e longamente morta ali naquele deserto. Sobreveio a morte e ali ficaram mãe e filho e do lado de cá, do lado do quarto, do lado do nosso herói se reinava o silêncio era porque o cheque havia sido aceite.
Bom moço este meu menino! A mãe é que o estraga com mimos mas também que culpa é a minha se o juiz o quis na casa dela. Atura-o ela mas se foi ela quem o quis, não sei porque me obrigaram a sustentá-los aos dois. E ao dizer isto sentiu as teias que dentro de si pululavam galgarem mais um muro e destruírem mais uma muralha.
Então, já acordado, entrou para o automóvel e fez toda a viagem acompanhado do seu sentido de felicidade porque não negava nada ao filho.
Terminaria, então, aqui e assim, agora sim, agradecendo a vossa presença e deixando o livro para que o possam ver e sentir e para que dele se possam servir, pintalgando-o das cores que vos forem mais simpáticas e também para que o possam julgar, num qualquer lugar, num tempo qualquer, num redemoinho mais e na esteira do tapete das ideias e do sonho.
Muito obrigado então e muito boa noite.
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