Carlos Nejar, poeta e romancista, dramaturgo e crítico brasileiro afirmou, e passo a citar, “a escrita é uma necessidade física, urgente, de absorver a realidade e mudá-la. Assumir a responsabilidade de levar uma mensagem ao portador. E não importam os obstáculos do caminho, a mensagem chegará. Escrever é saber cortar e fazer explodir os silêncios”
Mas a escrita só é valida se tiver leitores!
A triste realidade é que a leitura, em termos genéricos, está marginalizada porque não dá tanto nas vistas como um automóvel de último modelo! Quando se fala de poesia, a situação agudiza-se, já que o texto exige um esforço que a maioria dos seres não está para lhe dispensar. Já Camões se queixava no século XVI, e passo a citar:
Enfim, não houve forte Capitão
Que não fosse também douto e ciente,
Da Lácia, Grega ou Bárbara nação,
Senão da Portuguesa tão somente.
Sem vergonha o não digo, que a razão
De algum não ser por versos excelente
É não se ver prezado verso e rima
Porque quem não sabe arte não na estima.
E continua na estrofe seguinte:
Mas o pior de tudo é que a ventura
Tão ásperos os fez e tão austeros,
Tão rudes e de engenho e tão remisso,
Que a minutos lhe dá pouco ou nada disso.
Os Lusíadas, Canto V
Lamentável é que assim seja, pois o poema é uma pérola da essência humana, que cada vez é menos valorizada e cada vez mais precisa de ser compreendida entronizada.
No dizer de Carlos Nejar, a poesia é uma solidão que deu certo. Uma solidão activa e militante. Porque a solidão é cósmica. E a solidão não acaba nunca.
Poesia prende-se, pois, com pureza original, com uma visão depuradora do mundo imundo em que vivemos. O poeta tem o dever de denunciar as injustiças e atrocidades sociais; tem obrigação de contribuir para a cura da cegueira em que se move erraticamente a humanidade, de acordo com o que Torga escreveu: o poeta é como um farol. Dá chicotadas de luz na escuridão.
O poeta tem o direito de ser livre. Só assim pode ser isento na visão que transmite quando escreve; só em liberdade pode assumir o compromisso da luta por um mundo melhor e mais justo.
A poesia, através das eras, tem sido a arma mais resistente e persistente numa luta sem sangue, mas com ideias que têm provocado profundas e amplas transformações de mentalidades. Mas há ainda muito para fazer…
Carlos Nejar, de novo, afirma que a poesia é a arte da mudança. Recusa amarras ou prisões.
Foi com muito agrado e com justificada curiosidade que recebi e fiz a minha leitura do livro elementos, da autoria de Dina Cruz e de Nuno Monteiro.
Não se pretende com este trabalho apresentar uma análise científica, nem tão pouco uma crítica literária academicista que seria forçosamente castradora dos sentidos intrínsecos do poema.
Cada poema é uma pérola na sua integridade desafiante que se mostra e nos fascina porque é assim, tal qual se mostra, assumindo um brilho novo sempre que se muda o ângulo de visão.
É por isso que não se pode impor uma leitura, sob pena de reduzir uma obra de arte a um arquétipo frio, desnudo, inerte, inútil.
A sensação de belo deve pertencer a quem frui o poema, lendo-o, saboreando as vogais e as consoantes e as aliterações e as assonâncias e os ritmos e as insinuações e a vida que pulsa no poema sempre que temos a alma disponível para conversar com ele. Sim porque o poema é um ser vivo, mas preguiçoso, expressamente preguiçoso…o que ele pretende, sem o dizer, é que nos apercebamos de que ele existe, mesmo para além de nós; o que ele pretende é que lhe prestemos atenção, ora respeitadora, ora ousada, virando-o do avesso, se necessário for, para que consigamos deslumbrar-nos com aquilo que subjaz às palavras e até com a cumplicidade que entre elas existe.
Um poema é as palavras a falarem umas com as outras, mostrando aquilo que ocultam e ocultando aquilo que mostram; as palavras que, juntas, se carregam de sentidos e de memórias que nos fazem ver o invisível; as palavras que, num festival de magia, nos revelam mundos, vivências, emoções que nos fascinam e nos alertam para uma realidade renovada.
Abordagem da obra:
O título: em qualquer obra o título é muito importante e pode assumir-se, muitas vezes, como o responsável pela atracção ou repulsa em relação ao livro. Também é verdade que há títulos que não deveriam ter livro e livros que não precisam de título. A novela menina e moça faz esquecer o título saudades.
O título pode remeter para o espaço onde decorre a acção: Viagens na minha terra; a Cidade e as Serras; Mau tempo no Canal. Pode remeter para o tempo da acção: 1984, de George Orwell. Pode condensar o assunto da obra: Amor de Perdição. Pode referir a personagem principal: Eurico o presbítero; os Maias; Os Lusíadas. Pode ser simbólico: Felizmente há luar!
Elementos, pois é certo que se trata de poesia elemental. Quase todos os poemas apresentam explicitamente um dos quatro elementos essenciais. O próprio subtítulo de cada uma das partes para isso remete: Terra de mim, escreve a Dina; o fogo e a água, regista o Nuno. Não falta o ar!
Comecemos pela referência à poesia da Dina:
Trata-se de uma poesia de carácter intimista, com o sujeito poético a auto-analisar-se e a exteriorizar o que lhe vai na alma. É uma poesia dos sentidos e das sensações. Tal como Orfeu desceu aos infernos para recuperar a sua amada, Eurídice, a poetisa desce ao mais fundo de si em busca da poesia: desço ao fundo de mim/e arrumo/em pensamentos desordenados/as vivências impolutas/Dos acasos propositados.
Por vezes fica angustiada, envergonhada, com o que encontra: em mim/mergulhei/profundamente/…/no armário das vergonhas/descobri/sorrisos secos/…abraços amargos/…/estilhaços/retalhos/pecados de mim.
Poesia do eu que se procura, se analisa, se expõe numa simbiose marcante com o tempo, o espaço, os elementos.
Mas também poesia do onírico que leva o poeta até imprevisíveis limites, passando “além do Bojador”, penosamente , para conquistar/as nuvens/o céu/o sol.
Poesia arrancada à solidão e à escuridão, ambientes propícios à criação: Só/na escuridão/no silêncio/…/só/no plaino frio/…/no segredo das batalhas que travo em mim e levam à consciencialização da necessidade de intervir socialmente, gritando: fraco é o sol/que não aquece/…fraca é a palavra/que soa alto/mas não se faz ouvir/…/mas não se quer ouvir…
Poesia, ora eufórica, quando escreve: E há música/e cores/ e vida/em mim…ora assumindo um pendor disfórico, um acentuado desencanto: Houvesse estrelas na noite/e teríamos esperança no futuro. Tal como na vida das gentes, altos e baixos; luz e trevas ocupam, à vez, a alma da poetisa: Dias há/em que esvoaçam/em mim/borboletas de luz/…/noutros/corvos soturnos/ me cegam de negro.
A magia da família, a esperança colocada num nome de criança ressaltam como lenitivos para as angústias do dia-a-dia atribulado: Maria: Trazes a madrugada nos olhos/ e a claridade da lua na tua voz; ou Beatriz: És quem/num beijo/me enche de arco-íris ou Porto de Abrigo: É no teu olhar/que me escondo/que me aqueço/que me abrigo/…/é em ti/meu porto
O arranjo gráfico dos textos privilegia a verticalidade, onde as estrofes heteromórficas, com versos heterométricos, extravasam o tumulto interior de quem, descendo ao mais fundo de si, encontra profundas dissonâncias.
A frequente ausência de pontuação favorece a pluralidade/liberdade, mas também a responsabilidade de leituras, ao mesmo tempo que aproxima a linguagem do pensamento e das emoções. Por outro lado, pode ser entendida como a obsessão de preservar a unidade que a pontuação não favorecece.
Enquanto que os poemas da Dina evidenciam uma preocupação com o interior do sujeito poético, exteriorizando-o, os poemas do Nuno mostram uma grande preocupação com a realidade exterior, que o poeta interioriza e sobre a qual reflecte. É como um arauto dos gritos da Natureza, mas também do Homem, das suas grandezas e das suas misérias.
Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem. Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo.
Estas afirmações de Sophia de Mello Breyner Andresen podem verificar-se nos poemas do Nuno quando escreve: Canto/a beleza do bater das asas/as ondas do mar/…/o raio de luz/…a terra inteira de quem tu és filha.
O poeta ora se mostra fascinado com a beleza do mundo, escrevendo: dentro de ti/descubro os heróis do vento que te impelem por esse mar/os dourados faróis por onde navegas/as frágeis noites/ e as cálidas madrugadas; ora se sente desencantado com o comportamento humano, lamentando-se: os homens julgam-se donos de tudo/até das estrelas; ora se mostra desolado com a actualidade violenta dos desempregados, denunciando: Foi um alvoroço/quando lá entrou o demónio/e lhe disse que já não tinha emprego/ A mulher chorou/os amigos fugiram/e entretanto chegou a fome/nos olhos baços das crianças. É certo Sophia, Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo. O poeta angustia-se com as injustiças comportamentais de uma sociedade decadente, degenerada, que não trata dignamente nem as crianças nem os idosos: Até quando/ Chorarão as pedras pelos pobres meninos arrastados pelo gelo/ou verter-se-ão as águas pelos infames futuros dos nossos velhos ao abandono.
O poeta canta também a Solidariedade e o Amor cósmico: cheguei de noite e bati à porta tão ao de leve/como um sussurro ou uma paleta de sons saídos da floresta/…/O homem da casa ergueu a taça e cortou a broa/lendas de linho em cima da mesa e a porta aberta/ e tu que nos trazes?/…/Todas as flores do Alentejo!/os copos encheram-se com o vinho e/os miúdos de faces coradas/pegaram as flores e foram distribuí-las pelas outras casas.
A noite metafórica, símbolo do desconhecido, assume uma importância criadora, genesíaca, reveladora. É no atro da noite escura que mais se sente a necessidade da luz, do conhecimento. É no seio da noite que começa a gerar-se a ânsia de um novo dia, que deve ser vivido em pleno. Por isso o poeta escreve: Foi em meio da noite que finalmente compreendeu/que é impossível viver sem olhar/sem sentir/sem cheirar todos os aromas que vivem ao nosso lado. (Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem.)
Remata a obra com um apelo ao regresso à pureza original, ao mito do bom selvagem de que fala Jean Jacques Rousseau, o tal que “Deus criou e pôs num paraíso de delícias; voltou a criá-lo a sociedade e pô-lo num inferno de tolices”, parafraseando Garret em Viagens na minha terra. Escreve, pois, o poeta: Cospe toda a parcimónia e avizinha-te de mim/…/despe-te Rosa e juntos / caminharemos pela aurora do outro mundo/seremos bandidos e proscritos vivendo das raízes e das folhas/…/regurgitaremos da vida tudo quanto não importe / e dormirás ao relento bebendo estrelas e engolindo mundos.
Concluo, dizendo que a poesia da Dina exterioriza o seu interior em intensos poemas, marcados pela verticalidade, de ritmo rápido e sentido.
A poesia do Nuno interioriza o exterior que derrama depois em poemas mais extensos, onde predomina a horizontalidade do verso longo, pensado, depois de sentido.
Estamos perante poesia autêntica, pois os poetas expõem ideias e sentimentos, servindo-se de padrões formais que sobrevalorizam a sonoridade e alcançam a máxima intensidade expressiva num espaço mínimo. O discurso poético concentra-se numa série de signos e sinais linguísticos convencionais que abrangem vários níveis de significado.
De Elementos brota poesia autêntica, aquela que nunca fenece.
Cabe a cada leitor investir a sua quota-parte, no sentido de descodificar mensagens implícitas.
Livraria Bertrand, Vila Real, 20/03/2009
Henrique Morgado