Quando os meus alunos me pediram que fosse professor deles julguei que brincavam comigo. Houve uma altura em que me pediram que fosse o professor deles. De Psicologia entendamo-nos. Porque de Ciências Naturais já eu sou. Disse-lhes logo que não saberia ser professor de Psicologia. Que nada percebia do assunto. E eles voltaram à carga. Uma aula de trinta minutos apenas. Para ser filmada e incluída num trabalho. Para dar ao professor de Psicologia. Ao verdadeiro. Um trabalho que entregariam no final do período ao professor de Psicologia. Sem que ele sequer o tivesse pedido. Depois há toda uma comunicação social que se pronuncia contra os alunos. Não devem ser os mesmos. Adiante. Não pude dizer que não! Tive que preparar a aula. Que trabalheira! Ainda me disseram o título. Queriam que eu lhes falasse sobre relações interpessoais. Ou algo que o fizesse valer. Também os não poderia desiludir. Imperioso seria estudar. E bem. deram-me o manual de Psicologia. E disseram pode estudar por aqui! São atrevidos estes nossos alunos de agora! Não gostei. Não gostei do manual quero eu dizer. Mas li-o de relance. Por ali não me safaria. Havia que aprender de outro modo. Havia que saber mais. E teria que o fazer. Socorri-me dos meus livros. Socorri-me dos meus heróis. Socorri-me dos meus romances e dos meus ensaios literários. Onde mais se vai buscar Psicologia. Onde mais se podem observar procedimentos humanos. Em que outro local se aprenderá mais e melhor?
Com vossa licença, tentarei deixar aqui escrito o que naquela aula me saiu quase de rajada. E não falarei por minha boca. Falarei pela boca de outros. Falarei por interposição de livros escritos por outros. A mim o privilégio de os escolher. A vocês o dever de ajuizar acerca das minhas escolhas…
Julgo ter sido Dostoievski quem terá afirmado que só a beleza poderá alguma vez salvar o mundo. Que o mundo precisa ser salvo já todos sabemos. Que já no tempo de Dostoievski ele precisaria ser salvo… Talvez tenha precisado sempre. Não quero aqui discorrer acerca da afirmação do escritor. Ele lá terá as suas razões. Por meu lado eu acrescentarei se me permitirem que só com muito boa vontade poderá alguma vez a beleza salvar o mundo. Porque a beleza se subjuga à vontade. E a vontade humana. Que dizer da vontade humana! Acrescentarei e deixarei à vossa consideração se deveremos acreditar por um instante que seja na boa vontade humana! E sem responder afirmarei que julgo que entre os homens se erguem assustadores muros de indiferença. E esta indiferença é perigosa porque te pode um dia deixar a ti leitor encostado a um canto sem ninguém que sequer te ouça. Quanto mais se agitam os pauis mais crescem os rituais de indiferença! Alguém deu conta da ofensiva na faixa de Gaza? Quem ousou falar? de que valerão algumas declamações diplomáticas? O mundo deixa. O homem consente. O mundo é feito de indiferença. O mundo dos homens. daí que eu conceba um homem sem beleza.
Há um poema do Borges onde se diz que os justos irão salvar o mundo! Pois então que surjam os justos. E que vivam de justeza! Onde caberão os justos? Quantos serão! E em que canto obscuro estão? Tratados ficaremos então acerca de justiça.
Mais arrasado fiquei quando li algures num texto de Adolfo Casares que “…escrevo para mim, escrevo para mim próprio já que ninguém mais me lê! Percebo perfeitamente o desabafo quando sinto que os leitores passam os olhos mas não entram no texto para se não virem a arrepender. Como se o texto fosse arame farpado que os magoasse. Lá estão então os rituais de indiferença de que vos falava há pouco.
Continuemos com Saramago no discurso de atribuição do Nobel na academia sueca. Referindo-se à avó dizia ele que ela, pressentindo morte terá mostrado quanta pena sentia por morrer. Pena não medo. Pena da beleza do mundo que deixava. Então se o mundo é um lugar belo – afirmação indiscutível é o homem no trato com o homem que o estraga. O mundo do homem é que é um mundo não belo. Desse ponto de vista poderemos todos ser filhos do diabo. Pois este é incomensuravelmente feio. Da beleza deveria nascer a beleza. Se não há beleza há diabo. Então o homem vive enclausurado num inferno. Contradigo-me! Talvez. Não há ninguém que se não contradiga. Ainda Saramago “…em cada elefante convivem sempre dois elefantes…” “…o elefante que quer aprender e o elefante que se recusa…” apesar das aspas não sei se as palavras serão exactamente estas. Mais que as palavras importará o sentido da frase. Dos dois elefantes qual tem ganho? Se o mundo fosse um lugar aprazível. Mas o mundo dos homens está longe de o ser. Daí que a resposta seja óbvia.
Lembro-me agora de Camus na Peste. Orão cidade de súbito ameaçada e de quarentena. Parábola para um mundo enfermo. Quantos são os homens? Caberão numa mão cheia. Palco mirífico para observação atenta das relações entre os homens. Uma palavra apenas para o espírito do Dr. Bernard. Personagem ficcionada duplamente pois ela é uma transposição dum desejo do escritor. Na sua imensa crença pela bondade humana. Na sociedade dos homens não sei se o espírito do Dr. Bernard existirá! Pergunto-me se haverá, da parte do homem, confiança na humanidade.
Max Pagé, autor escreveu algures que o homem está em estado de permanente não indiferença, de disponibilidade ou de receptividade. Depende do objecto a que esse pretenso estado se refere. Se se referir ao outro ser humano nada haverá de mais disparatado. Com que disponibilidade estaremos nós no Darfur?! Ou quase em toda a África?! Ou no Afeganistão?! Ou na Palestina?!
Pensando um pouco mais adiantemo-nos na escala cronológica viajando para trás até encontramos o padre António Vieira no seu sermão aos peixes. Os peixes grandes comem os pequenos. Numa poderosa alusão à sociedade de então. Quanta imutabilidade a da nossa espécie. O sentido que o padre quis dar ao verbo é o da indiferença. A indiferença que grassa sem medida entre nós.
Ou então detenhamo-nos no Eça de Queirós que deixou escrito algo muito parecido com o que vos transcrevo. Contava ele da família que reunida à lareira comentava os dissabores do vizinho do lado e ouviam-se um pouco por toda a sala exclamações do género – Que horror! Quando se contava que na Indochina morriam milhares alguém exclamava – Onde fica a Indochina! Confesso que esta imagem me aterroriza. Primeiro pela ignorância que encerra e depois pela indiferença. Como se a vida humana fosse só a vida do quarto do lado. Enfermidade da sociedade. E outra vez Saramago quando se revolta para afirmar que na sociedade falta ponderação, crítica, filosofia. Falta discussão aberta e fraterna. É o outro lado dos muros de há pouco. Da indiferença à agressão viaja-se tão pouco. Direi mesmo que se não viaja pois a indiferença é, quanto a mim, a forma mais vil de agressão.
Caminhando rapidamente para o fim…julguem sobre se haverá alguém perfeito. Se não então a admiração que possamos sentir será sempre uma admiração relativa. Os homens desiludem amiúde. No acto seguinte poderão iludir mas infalivelmente virá de novo o momento em que desiludirão. E acerca da desilusão e da perda julgo pertinente recordar aqui mais uma figura que é também mensagem doutro grande livro doutro grande da literatura. A linha de sombra é a chegada à idade adulta. E essa chegada acarreta uma desilusão com a qual é necessário aprender a viver. Fará parte do processo do adulto. Num outro romance Conrad descreve um homem, um homem quase desconhecido apresentado quase como se fosse um deus e um outro que caminha no seu percalço. Esse homem grande tem nome. Kurtz. E se de início era tido como um gigante, a pouco e pouco, à medida que a trama se desenrola, vemos surgir um homem pejado de defeitos, que paulatinamente se apaga até acabar numa morte infame quase cobarde. Este poderosíssimo livro tem o condão de nos apresentar a cobardia. E é tão bem escrito quanto deixa no ar a sugestão de que todos temos um pouco de cobardes.
E então quão cobardes seremos na descrença? Quão cobardes seremos na rejeição? Quão cobardes seremos no abandono! E na perda! Todos estes são primos aproximados da indiferença.
Reflictam sobre o que aqui foi apresentado. Não quero que comigo concordem. Mas exijo que comigo pensem e reflictam.
Nuno Monteiro
Com vossa licença, tentarei deixar aqui escrito o que naquela aula me saiu quase de rajada. E não falarei por minha boca. Falarei pela boca de outros. Falarei por interposição de livros escritos por outros. A mim o privilégio de os escolher. A vocês o dever de ajuizar acerca das minhas escolhas…
Julgo ter sido Dostoievski quem terá afirmado que só a beleza poderá alguma vez salvar o mundo. Que o mundo precisa ser salvo já todos sabemos. Que já no tempo de Dostoievski ele precisaria ser salvo… Talvez tenha precisado sempre. Não quero aqui discorrer acerca da afirmação do escritor. Ele lá terá as suas razões. Por meu lado eu acrescentarei se me permitirem que só com muito boa vontade poderá alguma vez a beleza salvar o mundo. Porque a beleza se subjuga à vontade. E a vontade humana. Que dizer da vontade humana! Acrescentarei e deixarei à vossa consideração se deveremos acreditar por um instante que seja na boa vontade humana! E sem responder afirmarei que julgo que entre os homens se erguem assustadores muros de indiferença. E esta indiferença é perigosa porque te pode um dia deixar a ti leitor encostado a um canto sem ninguém que sequer te ouça. Quanto mais se agitam os pauis mais crescem os rituais de indiferença! Alguém deu conta da ofensiva na faixa de Gaza? Quem ousou falar? de que valerão algumas declamações diplomáticas? O mundo deixa. O homem consente. O mundo é feito de indiferença. O mundo dos homens. daí que eu conceba um homem sem beleza.
Há um poema do Borges onde se diz que os justos irão salvar o mundo! Pois então que surjam os justos. E que vivam de justeza! Onde caberão os justos? Quantos serão! E em que canto obscuro estão? Tratados ficaremos então acerca de justiça.
Mais arrasado fiquei quando li algures num texto de Adolfo Casares que “…escrevo para mim, escrevo para mim próprio já que ninguém mais me lê! Percebo perfeitamente o desabafo quando sinto que os leitores passam os olhos mas não entram no texto para se não virem a arrepender. Como se o texto fosse arame farpado que os magoasse. Lá estão então os rituais de indiferença de que vos falava há pouco.
Continuemos com Saramago no discurso de atribuição do Nobel na academia sueca. Referindo-se à avó dizia ele que ela, pressentindo morte terá mostrado quanta pena sentia por morrer. Pena não medo. Pena da beleza do mundo que deixava. Então se o mundo é um lugar belo – afirmação indiscutível é o homem no trato com o homem que o estraga. O mundo do homem é que é um mundo não belo. Desse ponto de vista poderemos todos ser filhos do diabo. Pois este é incomensuravelmente feio. Da beleza deveria nascer a beleza. Se não há beleza há diabo. Então o homem vive enclausurado num inferno. Contradigo-me! Talvez. Não há ninguém que se não contradiga. Ainda Saramago “…em cada elefante convivem sempre dois elefantes…” “…o elefante que quer aprender e o elefante que se recusa…” apesar das aspas não sei se as palavras serão exactamente estas. Mais que as palavras importará o sentido da frase. Dos dois elefantes qual tem ganho? Se o mundo fosse um lugar aprazível. Mas o mundo dos homens está longe de o ser. Daí que a resposta seja óbvia.
Lembro-me agora de Camus na Peste. Orão cidade de súbito ameaçada e de quarentena. Parábola para um mundo enfermo. Quantos são os homens? Caberão numa mão cheia. Palco mirífico para observação atenta das relações entre os homens. Uma palavra apenas para o espírito do Dr. Bernard. Personagem ficcionada duplamente pois ela é uma transposição dum desejo do escritor. Na sua imensa crença pela bondade humana. Na sociedade dos homens não sei se o espírito do Dr. Bernard existirá! Pergunto-me se haverá, da parte do homem, confiança na humanidade.
Max Pagé, autor escreveu algures que o homem está em estado de permanente não indiferença, de disponibilidade ou de receptividade. Depende do objecto a que esse pretenso estado se refere. Se se referir ao outro ser humano nada haverá de mais disparatado. Com que disponibilidade estaremos nós no Darfur?! Ou quase em toda a África?! Ou no Afeganistão?! Ou na Palestina?!
Pensando um pouco mais adiantemo-nos na escala cronológica viajando para trás até encontramos o padre António Vieira no seu sermão aos peixes. Os peixes grandes comem os pequenos. Numa poderosa alusão à sociedade de então. Quanta imutabilidade a da nossa espécie. O sentido que o padre quis dar ao verbo é o da indiferença. A indiferença que grassa sem medida entre nós.
Ou então detenhamo-nos no Eça de Queirós que deixou escrito algo muito parecido com o que vos transcrevo. Contava ele da família que reunida à lareira comentava os dissabores do vizinho do lado e ouviam-se um pouco por toda a sala exclamações do género – Que horror! Quando se contava que na Indochina morriam milhares alguém exclamava – Onde fica a Indochina! Confesso que esta imagem me aterroriza. Primeiro pela ignorância que encerra e depois pela indiferença. Como se a vida humana fosse só a vida do quarto do lado. Enfermidade da sociedade. E outra vez Saramago quando se revolta para afirmar que na sociedade falta ponderação, crítica, filosofia. Falta discussão aberta e fraterna. É o outro lado dos muros de há pouco. Da indiferença à agressão viaja-se tão pouco. Direi mesmo que se não viaja pois a indiferença é, quanto a mim, a forma mais vil de agressão.
Caminhando rapidamente para o fim…julguem sobre se haverá alguém perfeito. Se não então a admiração que possamos sentir será sempre uma admiração relativa. Os homens desiludem amiúde. No acto seguinte poderão iludir mas infalivelmente virá de novo o momento em que desiludirão. E acerca da desilusão e da perda julgo pertinente recordar aqui mais uma figura que é também mensagem doutro grande livro doutro grande da literatura. A linha de sombra é a chegada à idade adulta. E essa chegada acarreta uma desilusão com a qual é necessário aprender a viver. Fará parte do processo do adulto. Num outro romance Conrad descreve um homem, um homem quase desconhecido apresentado quase como se fosse um deus e um outro que caminha no seu percalço. Esse homem grande tem nome. Kurtz. E se de início era tido como um gigante, a pouco e pouco, à medida que a trama se desenrola, vemos surgir um homem pejado de defeitos, que paulatinamente se apaga até acabar numa morte infame quase cobarde. Este poderosíssimo livro tem o condão de nos apresentar a cobardia. E é tão bem escrito quanto deixa no ar a sugestão de que todos temos um pouco de cobardes.
E então quão cobardes seremos na descrença? Quão cobardes seremos na rejeição? Quão cobardes seremos no abandono! E na perda! Todos estes são primos aproximados da indiferença.
Reflictam sobre o que aqui foi apresentado. Não quero que comigo concordem. Mas exijo que comigo pensem e reflictam.
Nuno Monteiro
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