No deserto não crescem sentidos! Não chegam cheiros! No deserto a vida não tem tempo! Abunda o espaço! Uma música de vazio. Os olhos abundam tão ao longe…abarcam todo o mar, no deserto, os olhos!
(ele vivia numa toca como um bicho… longe do frio… longe das luzes…)
Caía CHUVA no deserto. Raro. Tão belo. Quando o céu se une ao chão. E deixa de haver chão e deixa de haver céu. Um cacto. Pois… um cacto no deserto! Belíssima bicharada saltitando por entre as gotas. Enormes crateras salpicando o solo… as gotas da chuva molhando a areia. A argila subindo aos céus. Molhando-lhe o nariz. Ele enchendo os pulmões. Agradecido. Sozinho. Um cacto. Pois. Uma flor no deserto. Aquela forma quase humana. Ele olhando o cacto. Não muito longe dali… não… nada longe dali… uma “joshua tree”. E quantos sons fugazes… efémeros… salpicando o vazio.
(as gargalhadas do homem magro rindo da vida rindo do vento rindo do deserto…)
Barba crescidíssima – os olhos entrançados numa cara encovada. Um cigarro de mescal… talvez fosse das cores. Talvez fosse da vida. Um adorador de areia. Água da chuva que lhe escorre pelas… às vezes pequena gota outras vezes virtude desabrida – água da chuva que o banha – um ranho de céu. Espelho cinzento de deserto. Um lugar vago e cristalino – uma visão tremenda – num abraço fraterno.
(as gargalhadas do homem louco perdido ou inebriado… o louco latejar do cérebro… há dois cérebros no homem, há o cérebro cérebro e há o cérebro coração… e só esse lateja!)
Chove no deserto. Um dia no ano. Uma fina camada de cinza que se descobre flor. Uma borboleta desajeitada que se penteia. Trauteando e empoleirando no ar. Ao longe ele vê o mar que se agita por entre os suores do ar. Ao longe ele vê ondas de água ascendente. E bebe-a. Fresca. Água caída e puída. Ele não baixa os braços. Ele não é cego. Não é surdo. Não é cérebro.
(de facto, olhando a água despontando nas flores, sopra um grito de mar e deita fora o cérebro. Não fuma cigarro. Não pensa senão na areia!)
Uns olhos inquietos pontilhando numa face irrequieta. Olham para todo o lado. Querem ver tudo. Tem na palma da mão esquerda todo o México dentro de uma garrafa… vai bebericando. Enquanto tempo escorre por ele como se fosse água. E por dentro de si olha-a no seu vestido branco. E então a água da chuva mistura-se com gotas de lágrimas. fica água salobra. Sal que lhe planta os pés. E o transforma em cacto. Endurecido. Deserto.
(num dia de chuva, a par com as flores e as borboletas, saem da terra e flutuam no ar… vivem de novo no ar cheirando a argila…)
Não é o cérebro quem chora. Muito embora seja no cérebro que ela vive. É o coração dele. Um coração seco. Árido. Um coração que não diz palavra. Ele sendo o cacto ou um cacto sendo ele. Bebe dum trago. Volteia e volteia e volteia. Ele é cego. É surdo. Não tem pernas. Pois não… tem raízes… as raízes que entram pela terra dentro e que abraçam toda a terra.
(gosta da chuva porque ela liberta da terra o cheiro da argila que era o cheiro da mulher dele… a mulher dele… era argila… ficou argila… não era de barro… era argila)
E a joshua tree observa tudo aquilo. Sem nada poder fazer. No outro lado da terra outras árvores… muito mais velhas… mais sabidas. Meteram-se na terra ao contrário. Quiseram esconder a cara e deixaram os pés à mostra. Deixaram os pés à mostra. Pés feios. Pés muito feios… feitos raízes.
Abandonados no deserto atiram as gotas de sal para dentro da terra. Terra disciplinada que deixa crescer raízes…
Nuno Monteiro
1 comentário:
E no meio do deserto, de dentro do cacto, longe das árvores secas que escondem os ramos na areia e estendem raízes secas para o céu... Uma borboleta desajeitada que se penteia...
Vestígio de luz.
Testemunho de vida.
Asas soltas em direcção ao sol... ao mar.
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