segunda-feira, 18 de maio de 2009

As formigas


Um dia destes ainda me dá para ser formiga. Deixar de trabalhar e sair cantando. Afinal o que por aí não faltam são velhos trovadores. Todos se banqueteiam. Nenhum quer pagar a conta. Também nem um se importa… será que há quem se importe… há toda uma panóplia de políticos que mudam de camisa. Mudam de camisa. E pronto e mudam. Caminham noutra direcção. Olho em minha volta e não encontro quase ninguém. Depois da minha tertúlia juro que pegarei na máquina fotográfica e vou fotografar os pés do Marão.


Um dia destes ainda me dá para ser formiga. E olhar olhando o céu. Percorrendo os carreiros que o degelo abriu só para mim. e toupeira. Engolindo e engrossando a terra que de todo vive emblematicamente esquecida. e perdoada. e louvada. Sair singrando como quem cavalga mundos e pergunta em castelhano. Aos milhares de píncaros que tem o mundo. E fotografias. Das flores campesinas e silvestrinas. Dos touros. Das lengalengas e dos estorninhos. Bandos aos bandos.
Um dia destes desato mesmo sendo formiga. E couraço-me! Sou do que vejo e sinto e vejo água e prados e um quadro tão nítido se mostra esquálido inimigo do homem. Essa criatura horrenda e sapiente esmera-se por se tornar cinzento borrando todo o azul de um tom colérico que nos sangra. Entrego meus ritmos irados e minhas palavras daninhas ao anjo bipolar que chega por vezes. Em volta mistério. Da estrada de Sintra. Pobres queijadas.
Ou então sacudo-te e atiro-te às cangas para que possas fotografar o inadiável. A sapiência. O trato. A desconfiança. Depois da tertúlia que te entregará o mundo num alçapão de estilo absolutista. Quem diria que percorremos todo este imenso caminho para desatarmos um nó dum mesmíssimo enxame. Devemos nascer e renascer. Mais de milhentas vezes. Devemos ser sempre os mesmos. Ergamos então a taça às caras diferentes dos homens que já cá estiveram antes. Isto deve ser tudo do mesmo jogo de espelhos. Como a minha escrita em círculos.

Um dia… um dia destes… um destes pego e transmuto-me. E escolho a formiga. De antenas espevitadas e de olho posto na que corre o carreiro lá em frente. O que terá sido feito das alegres garças que nos traziam as crianças. O que terá sido das pradarias africanas. O que terá sido feito da antiga fome de ideias. Quem morreu? Será que as formigas também assistem a funerais? Alguém terá afirmado que eu estaria doente. Ou louco. Alguém sabe tão pouco. Alguém que se conhece tão mal…

Um dia … é isso. Um dia. Um dia de cada vez e lutando. Perdendo. Lutando. Há tantas coisas fora do sítio. Há tantas palavras mal inscritas. Há tantos enganos. Contradições. Cristo! Há na rua Castilho uma livraria que é a trama. Trama. Afinal é nome de vulcão. Pode ser que sim. Um dia… um dia sim… mas formiga não. Cigarra. Não. Cigarra também não. Ave. Ou morcego. Um voo planado e um habitante do escuro. Até amanhã.
Nuno Monteiro

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“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

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