quarta-feira, 27 de maio de 2009

Beckett


que faria sem este mundo sem rosto sem perguntas
onde ser dura apenas um instante onde cada instante
verte para o vazio o esquecimento de ter sido
sem esta onda onde no final
corpo e sombra juntos se devoram
que faria sem este silêncio sorvedouro dos murmúrios
que anelam frenéticos por socorro por amor
sem este céu que se ergue
sobre a poeira do seu lastro

que faria faria o que fiz ontem o que fiz hoje
espreitar do meu postigo para ver se não estou só
a dar voltas e voltas longe de toda a vida
num espaço fantoche
sem voz no meio das vozes
encerradas comigo

Samuel Beckett[in Relâmpago, revista de Poesia nº 13, Outubro de 2003]trad. Manuel Portela

retirado de: o café dos loucos

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Ensaio sobre a ciência (CIÊNCIA)


E pronto. E foi desta. Foi… a rasteira. E eu grito aleluia! Mesmo não sendo católico. Mesmo não sendo. Tudo começou com um bendito concurso. As raparigas ainda acreditam… elas acreditam… e eu… eu refém de algo que nunca quis… de algo que julgava que abominaria. Antes de mais um pedido de desculpas. Que me anda atravessado desde há bastante tempo. Por causa dum raio dum berro… um berro que não deixou de o ser…

Entretanto pedem-me que façam um artigo científico. Ainda lhes perguntei sobre que era mas nada me quiseram adiantar. De modo que escreverei sobre ciência. Não saberei que ciência. Algumas culturas hidropónicas entrelaçadas com mandos e desmandos do psiquiatra de serviço. Que sou eu … quem mais. E o psiquiatra chama a atenção para a necessidade de se regarem as culturas. Excepto as que não precisem de rega. Água a mais estraga. Dá-lhe o bicho e aqui delrei. Aqui delrei. Aqui delrei. Delrei. Onde anda? Tenho esquecido que lhe devo ssavalagem. Tenho cá para mim que isso dos tropismos e dos tropenos… agora ouçam a matemática. Ouçam. Ouçam. E arquitectem uma questão. A questão. A rosa. A rainha. A inacessível bela quão bela envolta em negro envolta em masmorras. Os nossos patronos fidalgos fidagais.
O mundo não pode ser só ciência. O mundo não pode ser sem a ciência. O resto são pormenores. Entretanto faltam as tertúlias para vos ouvirmos a falar. faltam as vertentes duma melhor educação. Adiante que é capítulo non grato. adiante.
Saibam então que se misturarem anidro de sulforosporina com tetróxido de panaceia envolvem o mundo num triste lamento de chuva e de sulfonamidas. E de resto deixem precipitar com cefalosporinas. Ou tratem com benzodiazepinas. A propósito destas preciso eu e em dose cada vez mais elevada… dessas prestimosas aleivosias preciso eu. Plantas. Plantas é com etileno. Para amadurecerem os frutos. Porquê? porque desenvolvem uns pirros que não descansam enquanto não se deixam atacar pelo nemátodo da fogueira. O raios o partam. Metes-te dentro dum guarda-chuva de metal e postaste no alto do Marão num dia mau. E voilá! É ver a noite enrubescer enquanto se faz dia. De resto. De resto é seguir o protocolo atacando com pamoato. Pamoato de acetilato. Um acer alcoólico que transforma as bases em hidróxidos e que desfaz os pedregulhos. Porque os desidrata. Os desencanta. Os precipita. Cuidado com o precipitado. Cuidado com os recessos cuidado com as faúlhas do ingrato. Cuidado com as hilariantes desgraças dos gases nobres. Que por serem nobres se cobrem de ridículo. Dantes tratavam-se as minas com mercúrio. E espalhava-se bem espalhado por cima das escombreiras. Em linguagem de mineiro baixa lá a cabeça antes que testes pró tecto. Duma penada só - saltam as bruxas mais as suas garrrrggantuasssss. Chega um vento aloísio que se desfaz em pirros e leva-te a ti enorme gorgulho proteico para o meio do mar. agarra-te à dorsal se não conheceres mais nada. Que dorsssssallll. Que dorsssaaaallll. Que dorso! Sabes que o rinoceronte apaga os fogos do mato. Não não podemos soltar rinocerontes… são demasiados e demasiado inamovíveis para este nosso tão pobre espectáculo. Invasores. Heróis do mar… invasores. Heróis…
Ui que dores de cabeça. Trifene. Olha que não… a rapariga desata a rir. Trifene para as dores de cabeça! Porque se não atreve ele a resolver problemas de química. E até subiria os adutores da amazónia até encontrar os recessos rochosos dos cumes andinos. Ou pró fundo na imensa bacia por sobre os canhões. Por entre canhões. Ao fundo dos canhões a sedimentação dá uma rocha descaracterizada e altamente problemática designada turbidito. Ao fundo do canhão jaz inerte quase para todo o sempre o pequeno corpúsculo de turbidez. Quisesse o homem e ele seria doutro modo. Assim apregoa o todo-poderoso. Assim na terra. Da mesma forma enquanto azálea que sabemos ser trabalho de auxina. Saberemos. Sabemos. Ao fim do carreiro encontras uma bentonite tão branca tão branca tão branca. Ao fim da bentonite também encontras o carreiro. E entre os dois o homem de enxada. Aquela interjeição de sustentação. Aquele arfar de contentamento. Pela trela corria uma pequenina trilobite alvo da mais recente técnica de procriação. Actualismo. Olá cortazar. Olá Tenessee. Olá pequeno grande halo mecânico da gravitação. A barba. A barba. O sonho. A música. Não te escapas. Nunca mais te escaparás.

Da ciência… conheço um amontoado de palavras. Conheço um pecado de noções e de pústulas sem fim. Conheço demais. Conheço de menos. Sei lá se conheço. Não conheço os Andes. Não conheço a lua. Não conheço o céu. Não sei voar. Não sei traduzir. Nunca traduzi poeta algum.

Convido-vos a vós… sim convido-vos… a lerem. A lerem versos. Gedeão. Issso gedeão. Gedeão issso gedeão. Lágrima de preta. Para saberem então o que é a ciência. Para lhe saberem então dar o devido valor. Para que conheçam. Ler para conhecer.

Aqui ficam as minhas desculpas.
Aqui fica uma vez mais… aqui vos deixo o trabalho que me pediram… aqui fica este meu pequeno pecúlio… aqui… aqui Terra. Alô Marte. Alô Marte…

Obrigado meus alunos por me pedirem tanto. Obrigado por me chatearem tanto. Doutra forma nunca teria escrito isto. Agora façam favor e avaliem. Avaliem. Para saberem o que custa. Avaliem. Decidam. Sustentem a vossa disputa. Sustentem a vossa avaliação.

E se não escrevo mais não é porque não queira. É porque não tenho tempo. Mas não me esqueci de vós. Como me poderia esquecer de vós…

Mas não quero que deixem de estudar. Não quero que deixem de estudar. Não podem deixar de estudar. Não podem. Não podem deixar de o fazer. Também não podem deixar de sorrir…


P.S. o outro sujeito ooutrosujeitojazinerteemparteincerta. sejam misericordiosos!

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Daniil Harms


«Era um homem ruivo que não tinha olhos nem orelhas. Também não tinha cabelo, pelo que só convencionalmente se podia chamar de ruivo.Não podia falar, porque não tinha boca. Também não tinha nariz.Nem sequer tinha mãos, nem pernas. Não tinha ventre, não tinha costas, não tinha coluna vertebral nem quaisquer entranhas. Não tinha nada! Por isso não se compreende de quem se trata.É melhor não falarmos mais nele.»

Daniil Harms, in "A velha e outras histórias" assírio & alvim, 2007

retirado de http://ocafedosloucos.blogspot.com/

segunda-feira, 18 de maio de 2009

As formigas


Um dia destes ainda me dá para ser formiga. Deixar de trabalhar e sair cantando. Afinal o que por aí não faltam são velhos trovadores. Todos se banqueteiam. Nenhum quer pagar a conta. Também nem um se importa… será que há quem se importe… há toda uma panóplia de políticos que mudam de camisa. Mudam de camisa. E pronto e mudam. Caminham noutra direcção. Olho em minha volta e não encontro quase ninguém. Depois da minha tertúlia juro que pegarei na máquina fotográfica e vou fotografar os pés do Marão.


Um dia destes ainda me dá para ser formiga. E olhar olhando o céu. Percorrendo os carreiros que o degelo abriu só para mim. e toupeira. Engolindo e engrossando a terra que de todo vive emblematicamente esquecida. e perdoada. e louvada. Sair singrando como quem cavalga mundos e pergunta em castelhano. Aos milhares de píncaros que tem o mundo. E fotografias. Das flores campesinas e silvestrinas. Dos touros. Das lengalengas e dos estorninhos. Bandos aos bandos.
Um dia destes desato mesmo sendo formiga. E couraço-me! Sou do que vejo e sinto e vejo água e prados e um quadro tão nítido se mostra esquálido inimigo do homem. Essa criatura horrenda e sapiente esmera-se por se tornar cinzento borrando todo o azul de um tom colérico que nos sangra. Entrego meus ritmos irados e minhas palavras daninhas ao anjo bipolar que chega por vezes. Em volta mistério. Da estrada de Sintra. Pobres queijadas.
Ou então sacudo-te e atiro-te às cangas para que possas fotografar o inadiável. A sapiência. O trato. A desconfiança. Depois da tertúlia que te entregará o mundo num alçapão de estilo absolutista. Quem diria que percorremos todo este imenso caminho para desatarmos um nó dum mesmíssimo enxame. Devemos nascer e renascer. Mais de milhentas vezes. Devemos ser sempre os mesmos. Ergamos então a taça às caras diferentes dos homens que já cá estiveram antes. Isto deve ser tudo do mesmo jogo de espelhos. Como a minha escrita em círculos.

Um dia… um dia destes… um destes pego e transmuto-me. E escolho a formiga. De antenas espevitadas e de olho posto na que corre o carreiro lá em frente. O que terá sido feito das alegres garças que nos traziam as crianças. O que terá sido das pradarias africanas. O que terá sido feito da antiga fome de ideias. Quem morreu? Será que as formigas também assistem a funerais? Alguém terá afirmado que eu estaria doente. Ou louco. Alguém sabe tão pouco. Alguém que se conhece tão mal…

Um dia … é isso. Um dia. Um dia de cada vez e lutando. Perdendo. Lutando. Há tantas coisas fora do sítio. Há tantas palavras mal inscritas. Há tantos enganos. Contradições. Cristo! Há na rua Castilho uma livraria que é a trama. Trama. Afinal é nome de vulcão. Pode ser que sim. Um dia… um dia sim… mas formiga não. Cigarra. Não. Cigarra também não. Ave. Ou morcego. Um voo planado e um habitante do escuro. Até amanhã.
Nuno Monteiro

quarta-feira, 13 de maio de 2009

A terra vermelha do sangue derramado


São as pequenas belezas as que nos encantam tanto
São os pequenos nadas
Os belos castelos
E a tua gloriosa maneira de ser

São os vitupérios frios do deserto
As meadas indescritíveis da moda da macaca
Os insubmissos rios que pululam por sobre a tua imaginação
E que guarida dar às caretas dos sorrisos

Os risos da idade da inocência
Os soldados que éramos quando cumpríamos
Os fantasmas dos homens
As violetas e os teus prelúdios
Tudo se une em volta de mim

Em volta de mim há o frio do céu da noite e as estrelas lá tão longe
Pequenos nadas que dum momento para o outro
Acordam a rir e a pular
Como se acabados de saltar do circo ainda de face pintada e de bolinhas de sabão
Sou o teu sorriso de perlimpimpim

Sou os teus uniformes de algoz, as tuas batalhas perdidas
Sou da tua tribo
E da tua terra

sábado, 9 de maio de 2009

Herberto Helder


Toda a juventude é vingativa.
Deita-se, adormece, sonha alto as coisas da loucura.
Um dia acorda com toda a ciência, e canta
o mês antigo dos mitos, ou a cor que sobe
pelos frutos,
ou a lenta iluminação da morte como espírito
nas paisagens de uma inspiração.
A mulher pega nessa pedra tão jovem,
e atira-a para o espaço.
Sou amado. - E é uma pedra celeste.


Há gente assim, tão pura. Recolhe-se com a candeia
de uma pessoa. Pensa, esgota-se, nutre-se
desse quente silêncio.
Há gente que se apossa de uma loucura, e morre, e vive.
Depois levanta-se com os olhos imensos
e incendeia as casas, grita abertamente as giestas,
aniquila o mundo com o seu silêncio apaixonado.
Amam-me, multiplicam-me.
Só assim eu sou eterno.

Herberto Helder [1930-....]. "Poesia Toda". Assírio & Alvim.

Fonte: http://images.google.pt/imgres?imgurl=http://breathingtime.blogs.sapo.pt/arquivo/marilia15.jpg&imgrefurl=http://breathingtime.blogs.sapo.pt/arquivo/2004_07.html&usg=__NtZ2yF9LOzsK7p_yD8gqfFKLuMk=&h=319&w=480&sz=16&hl=pt-PT&start=13&um=1&tbnid=4RLHyWJpYY4kPM:&tbnh=86&tbnw=129&prev=/images%3Fq%3Dass%25C3%25ADrio%2Be%2Balvim%26hl%3Dpt-PT%26sa%3DN%26um%3D1

Não entres docilmente nessa noite escura


Não entreis docilmente nessa noite serena,
porque a velhice deveria arder e delirar no termo do dia;
odeia, odeia a luz que começa a morrer.

No fim, ainda que os sábios aceitem as trevas,
porque se esgotou o raio nas suas palavras, eles
não entram docilmente nessa noite serena.

Homens bons que clamaram, ao passar a última onda, como podia
o brilho das suas frágeis acções ter dançado na baia verde,
odiai, odiai a luz que começa a morrer.

E os loucos que colheram e cantaram o voo do sol
e aprenderam, muito tarde, como o feriram no seu caminho,
não entram docilmente nessa noite serena.

Junto da morte, homens graves que vedes com um olhar que cega
quanto os olhos cegos fulgiriam como meteoros e seriam alegres,
odiai, odiai a luz que começa a morrer.

E de longe, meu pai, peço-te que nessa altura sombria
venhas beijar ou amaldiçoar-me com as tuas cruéis lágrimas.
Não entres docilmente nessa noite serena.
Odeia, odeia luz que começa a morrer.

Dylan Thomas, in "A mão ao assinar este papel" assírio & alvim, 1998trad. Fernando Guimarães

Fonte: http://ocafedosloucos.blogspot.com/

sábado, 2 de maio de 2009

No teu sótão


Pululam as cantigas da tua infância e existo eu lendo e sangrando e tornando a escrever
Em teu sótão sobram as histórias e não se vê vivalma
Apenas as teias que então te moviam e te envolviam
Porque te cobriste de sótão?
Porque fugiste…
Porque te surripiaste ao coração…

O teu sótão
Ainda lá está
Sofre … é como o rio que nunca chega
É como o tempo que passa e que te esconde
Odeias os espelhos
Odeias os pós de arroz
São sementes das tuas rugas…
E são cobertas de flores
As tuas flores
O teu vento…esse teu Alentejo escuro e escuso…
Este meu lamento

O teu sótão
O teu canto
Coberto de fuligem
Sedento de carícias
Ardente das sarças
Um dia de prazer sem que a vida te sobressalte sem que o martírio recomece…

Nuno Monteiro
“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

Prémio Histórico - Filosóficas