Excerto de um texto do escritor Fialho de Almeida, escrito em 1892 e publicado no 2.º vol. do "Jornal dum Vagabundo" em 1903 (a reedição recente é um livrinho intitulado "Os Jornalistas e outras Pasquinadas", da Palimpsesto):
"Tornando às letras, os meus próprios amigos repararam no carácter fragmentário dos meus escritos, e os mais ferozes me acusam de intrometer fezes humanas nas tintas duma paleta onde só deveriam esmair suavemente as cores do espectro. O primeiro ponto é bem notado, eu mesmo me entristeço de até à hora presente não ter senão uma efémera bagagem de historietas de espuma e artigos 'mais ou menso verrineiros'. Pouco importa que essa obra faça o melhor de cinco ou ou seis mil páginas, e represente a fadiga de mais de quinze anos de nervos excitados. O público entre nós não diviniza senão os fabricantes de grandes calhamaços (critério natural num país onde a leitura é toda de lombadas) e mesmo que eu fizesse, naqueles pobres bocados, maravilhas, passaria sempre por um cronista aguado das futilidades mansas do meu tempo. Resignar-me-ei calado ao 'veredictum', tanto mais sendo ele, quase por completo, verdadeiro, mas explicando sempre que quem não aufere, como eu, dinheiro do Estado, e tem de ganhar o pão dia por dia, não pode senão produzir minusclarias literárias, obrinhas de fácil curso, pagas aos quinze tostões, Deus sabe quando, e escritas sabe Deus em que disposições de cabeça e de barriga! A cada instante aboprdam-me os ingénuos - mas por que não escreve você um livro inteiro, um grande romance, um grande quadro crítico?...
Imaginam que esses trabalhos se abordam com a inconsequência e a rapidez de vinte ou trinta páginas; mal compreendem que sejam precisos longos meses de estudo, anos de concentração, paciências beneditinas de factura; e durante todo esse tempo quem é que garante ao desprovido escritor o passadio, e depois da obra feita quando dá por ela o editor, ou mesmo quem é que a edita, não havendo em Portugal senão trezentas pessoas capazes de pagar até seis tostões por exemplar.
A linguagem plebeia agora, e os termos 'sujos'. Quem percorre a maior parte dos livros portugueses escritos nos últimods quinze anos, abismado fica da falta de interesse inerente a quase todos, e da estulta preocupação que leva os autores a ecsreverem emn 'estilo nobre', into é, numa algaravia convencional, bocelada de retórica, eivada de incidentes, imagens cediças, frases feitas, através de cujo urdimento a atenção dos leitores se esfalfa, resultando a convicção de que uma tal literatura é apenas intrujice de dúzia e meia de espíritos palavrosos, ermos de gosto, sem ideias nem experiências de ofício, e que quando muito aprenderiam nas aulas de português a sintaxe dos escritos fradescos que lá é costume apontar como mananciais de inspiração literária genuína. Imagina-se em geral que todo o fiel patife, poeta ou prosador, capaz de arreglar sobre o papel daquelas estopadas, fica 'ipso facto' sagrado artista e homem de letras, e ninguém perscruta a razão por que devendi ser a frase literária a expressão fotográfica, instantânea, das ideias, escritor que tenha obscuro e supérfluo o estilo., é que certamente cerece de limpidez nas figurações ou doutrinas que esse estilo é chamado a visionar. As obscuridades de vocabulário pois, os torcicolos da frase, as arborências excessivamente complexas do período, longe de creditarem o talento pictural do escritor devem ao contrário sobreavisar-nos quanto ao pequeno peso e nenhum feitio sa sua bagagem psicológica. Dessa vacuidade cerebral hipocrisiada de retórica, que há vinte anos tem sido a literatura artística do país, resultou em primeiro lugar a deepradação do gosto público, e em segundo a indiferença gradual, hoje completa, desse mesmo público por todos os que fazem em Portugal a profissão de homens de letras. A decadência é tal, que o estilo em que é uso escrever-se só é bom quando não exprime coisa alguma, e constar de uma série de lugares-comuns piegas, amantéticos, que leitura finda, valem ao plumitivo a reputação de literatejar 'de luva branca'. Ninguém compreende a necessidade que há de escrever como se pensa e como se fala, límpido, claro, brutal, simples e certo, veemente ou plácido segundo o veio de água do assunto, precipitado ou espraiado, consoante o temperamento emotivo de quem serve, e sincero sempre, arrancado da alma, e empregando, como Shakespeare diz, para a pior ideia, a pior palavra, venho a dizer, a mais cruel, que é quase sempre a mais pictural e a mais persuasiva."
Fialho de Almeida
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