domingo, 19 de dezembro de 2010

Os cardos do Baragan

Com a chegada de Setembro, as vastas planícies incultas da Valáquia danubiana decidem viver durante um mês a sua existência milenária.
Isto começa precisamente no dia de São Pantelimão. Nesse dia, o vento da Rússia, entre nós chamado muscal ou crivatz, varre com o seu hálito de gelo as extensões imensas, mas porque a terra ainda queima como um forno, o muscal perde ali alguns dentes. Não importa: desde há dias sonhadora, a cegonha assesta o olho vermelho no que lhe faz carícias ao arrepio das penas, e porque detesta o moscovita parte para regiões mais clementes.

Os Cardos do Baragan, Panait Istrati, Assírio e Alvim, tradução de Aníbal Fernandes

domingo, 12 de dezembro de 2010

Gare de Santa Apolónia, 1984

Eu? Eu quem sou? Um gajo de meia idade com umas olheiras fundas, suspeito até que doente, um mau estar que me acompanha e me impede o riso. Quase um mau hálito intenso ou uma espécie de lepra. Um navio em quarentena. Olhai atentos para quem sou… Pois dareis comigo, eu, o literato de barbas longas e nenhum sorriso. Prestes a desempregar, como, de resto, tantos outros, de facto, tão igual que nem me reconheço no meio da debandada, nem me encontrarão, imerso em livros, mesmo que me procurem. Sim, molhado em livros, moinhos que quase me afogam, outras vezes, quase me desatralaçam dos dias, enfim, um bibliotecário em fim de estação, sentado à chuva, ao cabo da gare, vai para quinze anos, vendo o comboio que vagaroso, parte. Quando se me acabar o dinheiro não sei o que vai ser de mim. O que comerei? Como pagarei o quartinho?
Que parte tantas vezes, este comboio. Sei que parte porque os afortunados que nele tomaram lugar, brandem sorrisos e deixam sobre os carris lágrimas duma convulsão que é como o mundo, umas vezes vulcão, outras cinismo, um gelo que vai apertando na garganta e que pesa como o raio. Talvez por isso tenha uma especial predilecção por estações, carruagens, carris, e essas coisas de cheiro vivo e aspecto sujo…
Não vivo sozinho. Tenho mulher e filhos. Entre o tempo que perco na biblioteca e o tempo que ganho, aqui na gare, assistindo às partidas, desfaço-me de mais de quinze horas diárias. O resto. Ora bem, quinze minutos para cada filho, dá à justa para um beijo, são quatro, uma hora, e vão dezasseis, dormirei, caso o consiga, quê, três, quatro horas, ao todo, chegamos já às vinte, o resto é para lavar os dentes, lavo tanto os dentes, cinco horas por dia a escovar os dentes, à bruta, exausto, sempre às escuras. Por norma não mudo de roupa. De mês a mês, havendo uns dez minutitos disponíveis, sento-me a escrever. Na mesa da cozinha. Quando há silêncio por toda a casa e quando, porque não estou enjoado, a minha cabeça vira e rebrilha como um fogo de artifício que quima palavras. Uma vez mais, na minha mente locomotivas diesel e algumas ainda a carvão que, quando arrancam, me deixam entregue às trevas. Tal qual os meus amigos, que já todos arrancaram e como o fizeram, com que espavento, vrrrummmmmmm; quando arrancaram, foram trevas que a mim se colaram. Mas voltemos aos dez minutos de escrita. Creio que me não enganarei nem mentirei se reconhecer que estes dez minutos serão tudo o que nesta vida eu faço de útil. O mais, o mais é de deitar fora. Ó Kafka nunca quererei queimar os meus escritos, antes queimasse as minhas mãos… Vem um pensamento da minha meninice e arranca-me um sorriso, coisa rara. Já vos disse que também lia. Aqui e acolá. Ainda bem que lês, meu filho, a literatura levar-te-á longe, era o meu mestre escola quem dizia. Pobre bastardo. Ainda hoje eu não sei se essas seriam bem intencionadas… provavelmente sim, seriam, isso sim, ainda que bem intencionadas, pura ignorância, era um pobre homem do campo, num país de pedras. Fornava escritores e só se lhe ouvia, “Tanta gente, Mariana”; “A República dos Corvos”, andam “Sinais de fogo” pelo ar, é assim este meu Portugal, sou eu assim, este pequenito mulato…
Eis o que me proponho fazer: vou seleccionar dez partidas de dez comboios diferentes que chegarão, findas as suas viagens, a dez destinos diferentes. Dez destinos que poderiam ter sido os meus, mas que, por inércia minha, nunca o serão. É isso que me fascina nas estações de comboio, a partida, estridente, dolorosa, a viagem, e essa já é do reino do sonho, e a chegada, que é romântica. Engraçado que, ao cabo de cada viagem eu sinta um copo de jazz latindo dentro de mim, como se fizesse parte do meu desajeitado coração e como se, antecipando a vida, eu fugisse do improviso e da glória.
Então, apresentemos a estação. Gare de Santa Apolónia, 1984. Uma locomotiva redonda, azul, ruidosa e suja, cheia de pequenos focos de tensão, dez carruagens, desconjuntadas, da cor e da traça do país. Destino, Paris. A gare ainda sozinha, eu olho o chão e noto o encerado do uso, os bilhetes que são carimbados com alarido, no átrio de recepção, a chuva de chumbo que mascara as vidas, as primeiras pessoas que chegam, beijos que procuram outras faces, carícias de vinte anos, eu que saio do meu tombadilho de literatura e me acerco do maquinista, boa tarde, o senhor é que é um maquinista? E o homem diz que sim com a cabeça, olá, só o quero avisar que terá um último passageiro especial. Dentro em breve chegará Tolstoi, o gigante russo, quererá chegar são e salvo a Paris, último destino. E em surdina, cuidado com os solavancos e as buzinadelas. Tolstoi é um velhinho de saúde periclitante e em perda razoável das suas faculdades. Temo que morra pelo caminho. E com isto me afastei, maldito chumbo que cobre este céu… abri bem os olhos, conseguia ver, donde estava, a locomotiva, por deus, Tolstoi que não olhe e se aperceba do monstro que ali está, como é feia, e a última carruagem, onde eu sabia, entraria Tosltoi. Finalmente chegou, arrastava consigo, por cima de um carrinho desses de rodinhas, uma carroça de livros. Seriam os seus. Mas que pergunta. Enterrá-lo-iam? E é então que eu berro para a gare plena de gente, Tosltoi embarca a caminho do paraíso. Que velho bizarro. E aquela gente toda, sem sequer mover a cabeça, olha-me pelo canto do olho. Confesso que soube logo o que fazer. Juro que me apeteceu gritar ainda mais o seguinte, alegrai-vos, cabritos do senhor, nem eu mordo nem eu minto, tudo o que digo é da minha verdade. Tolstoi vem aí. Mas não, só me consegui calar. Os cabritos do senhor demasiado combalidos. Pois que esta vida é uma puta rachada ao meio. Enquanto ouço o maquinista, arreda as pedras que quero arrancar.
E este tanto chega para hoje. Amanhã, Tolstoi, apesar de combalido, conversará com Óscar Málaga Gallegos. Sobre quem? Ora, sobre a trapezista, quem mais. Há sempre uma companhia de circo na algibeira de qualquer grande escritor. São seres extraordinários. Cronópios! Libelinhas às cores que comem o chumbo dos dias.

Nuno Monteiro

domingo, 5 de dezembro de 2010

N'zid

O sol escoava-se inteirinho entre o tempo assim assim, parado. A cidade era amarela e tu vestias uma saia verde e vinhas descalça, sorrias, trazias rímel pelos olhos e dir-se-ia que para trás encosta abaixo soltava-se de ti um rubro sonho. Vinhas para próximo de mim e eu, enquanto, ouvia um dedilhar longínquo de guitarra e sentia toda a terra dentro de mim, piscava os olhos e os meros compreendiam-me, a cordilheira que para sempre lá estará sorria enquanto os folhos da tua saia verde faziam floc floc floc. Tocavas ao de leve no chão com os teus pés graciosos. Primeiros? Eu esticava a mão e degustava um vinho tinto inebriante. Quente, do vulcão, ao fundo o dedilhar constante dum choro e tu movias para perto de mim e eu ficava olhando o teu sorriso imperturbáve, era engraçado, por dentro de mim a terra inteira ufanava e sentia-se o marulhar calmo e manso do mediterrâneo. Quando te conseguisse olhar por detrás do verde dos olhos renasceria e então seria uma noite perpétua que me não entristeceria. Nunca! porque por detrás dos teus olhos verdes e depois do floc floc da saia tu pararias o tempo e eu renasceria. E seria de sol e de areia e de inteira argúcia. Tal como tu, mulher da cidade amarela…

Nuno Monteiro

Porque vivemos demasiado o nosso castelo

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Faminto poema


Vejo-a e está tão sã a ponte entre a neblina. Passam os rios indecifráveis e levam-na os homens do mar quando a choram ou ainda as gaivotas quando a voam. Abate-se súbito o sol e clareia, limpa o ar e cessam os ventos alíseos. Tu cessas e deixas de chegar. Movem-se lá ao fundo os meros como se os habitasse a saudade. Sim, amigo, a saudade habita-os já. Nem sob a neblina nem no fundo. Não há Paris alguma e muito menos noite. Ó noite mais as badaladas ímpias da minha mocidade. Ferida, quiseste ir morrer longe. Paris está prenhe de novo. Nem um latido incomoda a minha noite. Eu, cessante, não durmo. Tenho fome. Tenho cada vez mais fome. É Paris quem me acaricia ronronando. Tu com fome? Veste umas asas e vai falar com as estátuas. Elas serão a tua salvação. E te não esqueças da máquina fotográfica que te mantém cativo. Na noite, por debaixo da ponte metálica, procuro o sol que tu foste, procuro a minha viagem, o meu comboio, limpo-me da minha Sibéria. Sei, ao cabo de quase quarenta anos que não há fama nem fortuna em lugar algum… nada que preste nem nada que resista. Mas há tentativas tantas quantas manhãs. E que algumas renascem esperanças…

Nuno Monteiro
“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

Prémio Histórico - Filosóficas