quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Madalena no comboio de mercadorias


Caída a noite e estabelecido o silêncio, a serra acomodar-se-ia por detrás da vida e os olhos, os olhos dele voltariam ao escuro, rápido, do fundo… há madrugadas que levam olhos mais além, curtos manifestos de amizade, pequenitas lembranças e estradas secundárias, os lugares vagos, a serra sabe-o tão bem. Louros? Em meio de noite calma propicia reprodução. Pirilampos dançam para aí aos molhos anunciando as grávidas. Vagar. Dantes, por detrás do meu quintal, passavam comboios de mercadorias, comboios que, por instantes me arrastavam entristecido. Hoje esses comboios transmutaram-se em serranias pedregosas, nas madrugadas fundas e nas barrigas das grávidas. Lentamente, cresce o bulício aos lados do nascente, ao horizonte. Querubins do senhor. Lentamente ela, uma pálida personagem, afasta o mundo com a mão e conduz o bando de latidos com o cajado. Ele, ermitão, deitar-lhe-ia um beijo ao saco. E esse tanto é tudo pois que nem um céu por entre a terra nem a terra entre o céu. Até os querubins o sabem. Cristo, se vagueando entre as estradas secundárias, deveria procurar Madalena, a morena alta e cigana, a dos pés bonitos.

Nuno Monteiro

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“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

Prémio Histórico - Filosóficas