quinta-feira, 9 de setembro de 2010

As estátuas famintas nas ruas de Paris



Numa das nossas inúmeras deambulações… numa das nossas divagações… (é muito difícil situar o espaço da acção – uma vez que tanto poderíamos estar por esse mundo fora como embevecidos em casa esperando os louvores de um copo de embriaguez) seja como for, em uma das nossas preambulações deparámos com um banco de madeira puída e bastante mal tratada que se erguia só e abandonado em meio de praça. Nisto há um sujeito pequenino barba burlesca e roupas puídas que dele se acerca… a humanidade tem sopros de genialidade… da mesma forma que a literatura a humanidade não tem preço nem lisonja. A humanidade perde a noção de tempo – e nós… bem nós estacámos e observámos: o que dali saiu. O que dali saiu foi a alma inteira do pequenino raquítico – foram os humores do homem que se espraiaram num discurso pessimista anarca. Ouçamo-lo então:
“Sabes o que é um rei?! Para além dos mantos púrpuras e dos pratos de faisão… para muito depois dos decretos e dos ditames… num reino cercado de arames… Deixe que explique… a natureza é de um virtuoso bêbado… as palavras são mera verborreia – atiçadas ao vento como se fossem da noção da antimatéria… diarreia – um travo de bílis que tosse enquanto solfeja ao ar… sabes agora quem é o rei! Pois sei que sim… sei que sabes… então voltando à carga – qual é a questão seguinte? Como se comporta o homem perante o rei?! A figura da autoridade, a noção de disciplina, a fonte do mal, o poço do diabo, os olhos enternecedores de um pobre diabo dono de uma personalidade insofismável mas em concreto um imbecil, um estúpido, um falhado…há dois tipos de homens… há os felizes pobres! Alvíssaras escravizados imbuídos de um espírito de religiosidade que os calca quantas vezes necessárias… esses arrastam as mãos em concha gaguejando por pequenas migalhas!... aqui e acolá dão os seus tristes e zombeteiros pequenos ou grandes golpes “que bom enganei-o!” sem sequer saber que ele sabe que ele o enganou! Até disso vive o rei… esses são os miudinhos da vida. Os eternos patetinhas… podem atirar aqui e acolá uma sarça mas que não será nunca perene. Falam muito alto. Gesticulam muito e as palavras saltam como enormes pedregulhos sem atingir ninguém. Comem muito. Vivem de barrigas fartas e morrem ao fim de pouco tempo com um acidente de váscula – ups! o azar e o fado, que terra de diamentes!... Destes nada falar. Sabemos como se comportam estes perante o rei. São espezinhados sem que nada de importante volteie em meio… são a alma de deus e dos anjos. O retrato daguerreótipado de minúsculos pontos nitrato de prata! E beras! Encarniçam-se e deitam pequeninas bolhas de sal pelo canto dos lábios! Ou então berram - eu mato-o! Se esse ladrão entrar em minha casa eu mato-o! Eu mato-o! Eu mato-o! Eu mato-o! Ou pelo menos concretizam a ilusão de felicidade do classicismo católico -romano. A beatitude da porta da igreja e da sede do púlpito. A bonança da transmutação das palavras do “pater”, Vivem num “continuum” espácio-temporal animado e benfazejo… vivem num fedor de casco… infelizes os que comungam… O outro tipo de homem é adaga. Punhal. Cala-te e observa. Sente o pulsar da vida. Basta um aguaceiro golpe de espada! Deves ter reparado que agora estou a falar para ti. Sabes se é o rei quem comanda?! Raro. Tem a ilusão de que o faz. Cala-te e observa. E ilumina o teu caminho. Através do caminho do poder – esse poderoso estimulante. Desenreda-te. És actriz. Sê actriz. O teu desejo de palco está a chegar… atrás dos tempos estão tempos. Das derrotas e das quase mortes! E das ressurreições. É para isso que vive entre nós o diabo. É para te conceder essa graça. Tens que decidir do medo que esse Lúcifer te poderá instilar. E esse medo é de eternidade!... a eternidade é a salvação que a figueira te saberá ofertar. Sabes o que é um rei. É um espantalho que serve para meter as hordas em ordem. Sopra medos e mortes mas deixa que o arrebanhem porque é, por si só, um pequenino imbecil. Arregimenta as tropas em parada. Mas é o espírito do pedreiro livre que trabalha nos bastidores. São as luzes da genialidade que lhe dão cor e vigor! Vivem do fogo pálido que irradia. Não. O jogo do poder não se mostra sob a forma de luz, Jaz soturno sob a forma de escuridão no poço da montanha. Revolta. Pára e lê à tua volta. Só tens que viver. Deixa que a adrenalina te sulque as veias. Muito sincero! Sempre que o navio sangra ouve-se um salvo que é o do capitão. Se esse silvo te atormenta então só o sossego te salvará. Se convives com o desassossego então… de nada te salvará fumar faboradas e faboradas de um mufo estéril… São os ditadores que afastam os abutres. Quando espreitam procurando… e o fazem a medo… sugam do medo o momento da morte que infalivelmente os espera. Ninguém precisa dos generais e dos marechais pois esses são os fantoches ao serviço da governação. Ao serviço dos arautos. O rei da nação vai só e os alicerces estão corroídos e podres. Vem vento e borrasca. Em última aragem vingarão os espíritos com aura de espectro. Os alvos a abater. Que acumularam sumo e seiva. Então as asas não lhes escaparão. Os olhos de pássaro intimidam e arregimentam… e tu?, como te comportarás! Como te disporás ante a viragem, Haverá quem te empalideça em governo e voragem? Questão que será a última. Vai ao espelho! Olha para ti. Encontra se faz favor o espectro demoníaco que é a tua aura de espírito. Não vejas a mulher. Procura além do medo para lá dos sons guturais de Maldoror… só então almejarás encontrar. Só então almejarás encontrar…”
Estas e todas as outras estradas foram dali feitas grito e som. Da pequena grande madeira de bancada puída naquele canto naquele minúsculo naquele sortilégio… dali saímos envoltos em “mist” e se por fora praguejávamos por dentro irados e pensativos. Por dentro ruminávamos. Por dentro elefantes ou bois ou algo do género.


Nuno Monteiro

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“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

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