sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Os bravos viajarão...

Ardera tudo na véspera… dele, sobrara o caderno de anotações, a balaustrada donde ele via e o céu, da noite, limpo e sereno, um reboliço, por detrás da magia. Ardera tudo, sem choro, de véspera. Os olhos azuis virariam a página, correriam dele, um pano de palco que fecha ao som dum desmaio. Senta na balaustrada. Encosta a uma parede caiada e semicerra os olhos. Uma das mãos anota estrelas e vazio, meteoros, pequenas borboletas, terra e algodão, campos imensos… a outra segura todo o corpo, fumando um cigarro e bebericando mescal. E alça as pernas, esquece-as acima do muro baixo… e pensa bem dentro dele… sou uma enorme muralha, anoto dos meus olhos sentinelas, um mar de chamas azuis, violáceas, anoto os mortos, as pedrarias e os uivos… fumo dos combates cegos, inclementes e bebo um mescal em sangue, um copito de sal e um império de dor!
Vai passando um tempo devagar e quando adormeço, por fim, cessam as chamas por sobre as árvores e as celas. A vida adormece também. Vejo então, sonâmbulo, como os meus pés se deslargam de mim e sobem os degraus, os meus pés, enredados de botas, saídos das pernas, os meus pés sós, deitadas fora as pernas, e abandonadas as mãos… enfim reconheço, bamboleio vazio, e só meus pés, tirados de mim, apagam a dor, caminhando sem fim…

Nuno Monteiro

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“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

Prémio Histórico - Filosóficas