terça-feira, 12 de outubro de 2010

Sangue, suor e Tango


Dentro de mim sinto que não tenho nada! E finda a oração apagou a luz e dormiu. É que enquanto se diz que a vida se leva de vencida com as regras da ditadura ela sempre teve um fraquinho por Bakunine e pelos reles e utópicos anarquistas. Durante o sonho teimava em lábios pintados e pernas vestidas por mãos masculinas, pensava em fumar e vestir longos vestidos enquanto dava grandes saltos, de palco em palco na mítica Buenos Aires, por vezes cigana, mostrando os lutuosos cabelos pretos ou, espanhola, fogosa, uma litania que debulhava de dentro dela e lhe tirava a roupa e a percorria, à flor da pele, empalidecendo. E mesmo que desmaiasse nada temeria pois que ele dela se acercaria e tocando-lhe os lábios de novo a traria à vida e então, olhos nos olhos lhe diria, despe-te…
Uma anarca incipiente, ainda agora saída do ideal revolucionário do romantismo…
Dentro de mim não há nada! Apenas um crucifixo, um quarto nu, liso, húmido. São as regras da vida pura que me despem das cores e me não pintam os lábios. Adormece a olhar a televisão, mantém o bando de cabelos pretos escondidos entre a almofada. E mesmo antes de adormecer o que olha é a silhueta de um comboio andino e murmura, vai vazio de mim enquanto eu, eu cá fico vazio dele…
Feita adulta, para além dos cabelos pretos demoníacos, completavam-na dois pares de olhos escuros que fuzilavam por tudo e por nada…
Nuno Monteiro

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“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

Prémio Histórico - Filosóficas