quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Do amor duma estátua


Morava uma estátua num quarteirão em Paris, numa praça dum quarteirão em Paris, ao fim duma rua dum quarteirão de Paris. Talvez em Paris não empreguem o termo quarteirão. Defronte dela, da estátua, morava uma outra estátua, com longos cabelos pretos ondulados e seios não tão pequenitos assim, que aleitavam.
Num dia de ventania, escuro como breu e julgando ver Satanás ela gritou um silvo horrível e vergou-se de joelhos. A estátua tinha partido os ossos de ambas as pernas. Foi quando a outra estátua, eu, arranquei os meus pés do chão e caminhei como sobre betão e ferros retorcidos até chegar junto dela. E junto dela, após exterminar os fantasmas e os abutres que a profanavam com gestos e gritos orientais, peguei-lhe ao colo e aluguei, numa pensão barata um pequenito quarto. Foi quando finalmente descobri por que “Paris nunca se acaba”. “Entalei-lhe” as pernas durante quase dois meses para que, cicatrizada a ferida, se não notassem cortes nem cicatrizes. Há que ter estes cuidados quando tratamos com a aparência das estátuas mulheres... Lavei-lhe o corpo uma vez por dia ao longo desses dois meses, e vim a perceber, paulatinamente que a estátua de cabelos longos ficou perdidamente ardida de amores por mim…

Nuno Monteiro

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“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

Prémio Histórico - Filosóficas