Esboçava, depois de dois anos, o seu primeiro ténue sorriso. Tépido e cauteloso como a vida. Saía de manhã para um emprego e por lá se deixava ficar horas e horas sufocadas… haverá Humanidade menos valorosa? A questão paira no ar… e Humanidade menos merecedora? Se Anita seria Corajosa? Coragem é uma espécie de vida de frio, eremita cumprido de sonhos, terra ou porão de navio… Anita diria merda para a coragem e o restante da frase segurá-la-ia pois do fundo do coração não queria ofender ninguém…
Sorria pouco e a medo e mal dava conta do sorriso impedia os lábios e afogava-o. Cruel seria Anita com ela própria. Cumprira finalmente a última etapa. Pontapearia a sorte e pagaria para ver. A custo se erguia pela parede íngreme da cordilheira, dobraria as tormentas e olharia o mundo lá por fora, por cima das nuvens, por detrás dos oceanos, leria Neruda e Skármeta, ouviria zumbir a miríade de insectos coloridos que vagueiam pela noite e tomaria banho, nua ou envergando um vestido negro de gala, nas águas borbulhentas da praia da Ericeira. Alguns diriam, dedo em riste e olhar acusador, Louca! Restelo e os seus velhos, velhacos empobrecidos e pútridos. Outros, mais bondosos, encovar-se-iam e chorariam sós, no interior sulfuroso de alguma casa de banho. O vento atiçar-lhe-ia os cabelos vermelhos entrelaçados como algas e Anita nadaria para os fundos lentos e assintomáticos onde vivem os meros.
A pouco e pouco compreenderia que a cordilheira é a própria vida. E que os poucos e pequenos instantes de sensatez são aqueles em que, no calor da batalha, se olha em volta e se olham os outros, os outros diferentes que lutam como nós.
Mas não os outros que, parcimoniosos e fartos de falinhas mansas, recorrentemente atiram areia aos olhos quando dizem, merda para esta vida, puta que a pariu. Apogeu de Judas! E será nesse instante que Anita, imbuída dum transe poético pensará, agora que finalmente sorri, não vou trair–me mais, onde fica o terminal de autocarros? E gentilmente se despedirá olhando já um adeus… o doido do circo, saído da tasca dir-lhe-á, adeus à terra imbuída de noite! Verás um amanhecer esplendoroso que não durará mais que instantes teus.
Nuno Monteiro
1 comentário:
A felicidade está precisamente nesses efémeros momentos em que libertamos por completo a alma e nos deixamos levar pela maré...
Mas é preciso procurarmos esses momentos a cada dia e permitirmo-nos deixar-nos levar por eles...
Haja mar...
Haja marés...
Haja sorrisos azuis de sal e água...
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