Amadeu Baptista
&etc, Setembro de 2010
(...)
A desagregação está a marcar-nos como povo, Nuno,
o povo acabará por resistir,
mas o povo faz coisas iníquas,
pode queimar-nos a casa num espavento de ódios,
pode escolher a sarjeta contra todas as expectativas,
pode acorrentar-se ao jugo da insipiência
e deixar por isso que se fechem escolas às centenas
e que se não trate de dirimir a injustiça de sempre
no campo,
nas cidades,
na pátria,
no planeta,
enquanto a feira dos capões está viva e se recomenda
e os Impérios aproveitam o sono dos vulcões que tanto tardam
a explodir
Pombos, pombas, alcachofras, acelgas, nabos, tomates – de tudo há na feira
de antiguidades,
o mal é esse, não se ter dado baixa nos armazéns dos legumes
de tudo quanto está podre,
continuando o baile a primazia da música alienante,
alienígena,
aqui,
onde todos ralham e todos têm razão
e a morte continua a matar,
por mais que se emocione,
como o Saramago quis,
por mais que deixe de nos escrever cartas de cor violeta,
por mais que escute connosco sonatas para violoncelo
e primavera
por mais que se lancem passarolas no espaço para que a pátria se veja
num arremedo de esperança
– está morto Bartolomeu Lourenço de Gusmão,
está morto o nosso menino de oiro, sumido com o seu balão
no desconforme horizonte do Cabedelo,
está morta a Micas Bombas com os seus prodígios capilares,
está o José Saramago morto,
estamos todos mortos neste infame globo,
quanto mais mortos estivermos melhor nos escravizam
Ah, dancemos, dancemos, ainda, irrevogavelmente,
soltemos uma gargalhada visceral sobre tudo isto,
registemos a infância como padrão do dia em que começamos a esperar,
porque quem espera, desespera,
e em todas as vielas há um anjo que espera
Eu era menino
e o do que melhor me lembro é da viela do Anjo,
onde o mundo é intacto,
se mundo é o que por lá se vê,
os anjos são a única metafísica em que acredito,
comam ou não comam pequenos chocolates,
ajudem, ou não, Caim na heresia benéfica,
tratem, ou não, de contrapor à espada de fogo o fogo dos vaticínios
– os anjos somos nós no espavento de sermos,
isto sei eu que não sou um vencedor,
mas qualquer insignificância é valiosa,
qualquer migalha,
e se alguma transcendência há que seja essa,
a que dos anjos vem,
incorrigíveis
(...)
Lido em: http://porosidade-eterea.blogspot.com/
domingo, 21 de novembro de 2010
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