quarta-feira, 30 de setembro de 2009

O Livro dos guerrilheiros


(...)
Se os verdadeiros escritores da nossa terra exigirem a certidão da história na pauta destas mortes, sempre lhes dou aviso que a verdade não dá se encontro em balcão de cartório notarial ou decreto do governo, cadavez apenas nas estórias que contamos uns nos outros, enquanto esperamos nossa vez na fila de dar baixa de nossas pequeninas vidas. (...)

José Luandino Vieira, O livro dos Guerrilheiros, edição Caminho

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Unhas pintadas de encarnado...


Unhas de um vermelho alegre e vivaz!, pintadas… de um encarnado limpo e vivo! E uma seda feita () repousando-lhe tão ao de leve pelos seios… nem muito grandes estes… apenas graciosos! Ela ri quando a seda julga que se destapa
e
logo após – com um ciciar engraçado nos olhos azuis marinhos – num fundo de mar e numa areia branca – com um sopro de vida em torno dos olhos marejados de sorriso… é ela quem surge quando se anunciam as unhas pintadas de encarnado… é ela quem entra de meias descalças e de cabelo ao vento. é ela quem anuncia ao fim dos espaços ao fim dos risos. é ela quem sufraga o teu coração. !É ela a mulher alta varina! É ela a imponência dos pés e a pele castanha bronzeada – um altar ao tempo como água que lhe escorre pelo colo e lhe socorre os seios com os braços valentes.
E
logo depois – com um ar de criança encerrada no corpo adulto da mulher – presa infinda dos fundos azuis das areias castanhas de coral – é ela! Só pode ser ela! Quando encolhe o pescoço e deita fora o sorriso – esse sorriso – esse adeus – esse tirano. Quando atira olhares ao longe como se quisesse mais e mais céu! Mais e mais azul! Essa toda intensa cristandade – essa toda intensa tez
(amarela dos cabelos muito castanhos muito secos)
Choram os tempos duma lívida insensa tez
Quando ao fim do dia se instrui e encerra o livro
Quando ao fim da noite se engana e pinta por cima do vermelho
Quando ao cabo da viagem se afunda nas rosas até lhes tomar todos os espelhos
Logo após… bramindo das pernas … tatuadas por sinal!
Tiritando de frio… sorvendo vapor do vaso do calor…
E descerrando a saia
Alçando acima das pernas para além da figura…
Apenas as nádegas, nada mais que as nádegas
E um raio de luz…

Coroando o frio – adensando o mistério!

Nuno Monteiro

A Dona Olga e eu


Mora aqui, num destes prédios sem idade nem elevador, sempre vestida como para um baptizado ou um casamento, de boininha verde na cabeça, toda pinoca: nenhuma prega, nenhuma nódoa, um camafeu a fechar-lhe a gola, pulseiras, anéis, o caracol trabalhado sobre a linha de lápis castanho das sobrancelhas. Deixa uma cauda de perfume atrás, um sorriso difícil à frente. Rugas no lugar das covinhas das bochechas: que idade terá? Quase não se percebe a falta de dinheiro, quase não se percebe a solidão: domingos compridíssimos, o retrato de um sargento da Marinha na cómoda: isso vejo do passeio porque a sala é pequena e o rés-do-chão baixo. (...)


António Lobo Antunes - crónica: in http://aeiou.visao.pt/a-dona-olga-e-eu=f526420

sábado, 26 de setembro de 2009

O Poço - Nuno Monteiro


Porque o mar das dúvidas é mais forte que o mar das certezas!... porque nem todo o conhecimento te purificará quando em tua volta pulular o medo... porque toda a tua beleza esbater-se-á!... envolvendo um outono cinza chuva... porque adorna e afunda toda a nação!...balsando de borco ante o fastio dos tempos... porque água alguma chegará para te purificar!
e.
do poço...desse desprezo... desse calabouço...
da vida... desse belo-horrível!
entro espelho adentro e vou bater ao outro lado
à outra noite...
ao sítio do mel e das estrelas
ao oásis autista
ao circo prodígio
ao meu marão maravilhoso
e
enquanto em mim repousar leitura
quererei gritar!
(ao menino dos olhos grandes e de abraço descomunal)
germinal...
internacional...
!pula e salta por dentro de mim!
Obrigado!


Nuno Monteiro

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Viagem ao fim da noite


Caí então doente, com febre, explicaram-me no hospital, enlouquecido pelo medo. É possível. Que de melhor temos a fazer enquanto andarmos por este mundo, não é?, do que sairmos dele? Loucos ou não, com ou sem medo?

Céline, Viagem ao fim da noite, edição Ulisseia


esta é curta! comentam ou não? loucos ou não? com ou sem medo?

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Livraria Trama - Lisboa


Tu, dentro do meu olhar…

O meu trevo é um trevo de quatro folhas e cada uma delas aponta um norte diferente cada uma delas aponta uma gota de chuva cada uma delas rasga uma diferente clorofila cada uma delas voa num vento distante – porém todas estão tão perto!

e.

Sei contudo que entre os muros há muros e por cima dos muros crescem muros e que todos esses muros… bem… desses muros… deixemos os muros… larguemos os muros…

e.

O teu trevo é uma canção o teu olhar vibra de emoção e toda a tua moral… toda a tua viagem corre pelos mundos e se te move o olhar… se te moves livre por dentro dos olhares…

Eu, por dentro do teu olhar!

Do meu pequeno recanto
(O meu tacanho recanto é realmente de uma beleza sadia extraordinária)
Do meu pequeno recanto abarco com a vista todo o rio que me cerca… com a vista que por vezes me cega e me deixa um pouco lívido… abarco com a vista e embarco na viagem. A viagem é o alcance da vida…
Do meu pequeno recanto escolho à vista barco comandante e equipagem. Destino nenhum, qualquer! A viagem o suco… do meu pequeno recanto. O meu pequeno regato. O meu encanto de solidão.
(O regato escuro do meu encanto é realmente de uma beleza singela)
Mas quem mais se deitará comigo? Neste nosso louco vento… ao luar! por cima do capim, por debaixo da aba da humanidade, por sobre um enorme toldo de circo – encharcado de água e perdido de vida – humanidade fria ventosa uma frágil face sorrindo uma ode por cima das águas.
Nesta minha vida toldo o circo das cores correctas e ouço as estórias trazidas pelo luar – sorrio quando me mostram o linho e o pão – inebriadas estórias de fugas e madrugadas inebriadas gazelas que me deixam inquieto no meu pequeno recanto
(o meu tamanho recanto é realmente…
A minha casa o meu jardim o meu espelho…)
Lá por fora moram os lobos! Rangem os dentes às pedras da viagem… magoas os pés de cada vez que corres atrás das estrelas… passam por ti milhares de cometas que te deixam o cabelo pintalgado de fogo… muitos são lobos por falta de opções… muita maldade polvilha as entranhas dos lobos… ao luar! Neste vento maldigo… afundados em escuridão homens confundem-se com lobos… por travo amargo do veneno… não deixas de cumprir tua viagem… mas quando cessas olhas tua face magoada e admiras-te com teus cabelos de fogo. Não. Não cessas tua viagem. Nada de ti abandonas… percorres os caminhos pisando com os teus pés. Como são belos os teus pés! Como és bela por cima dos teus pés!
(recanto tamanho este meu lago de serenidade…)
Sabes! O rio das águas não acabará nunca! E nunca os lobos poderão morder teus cabelos de fogo. Ou sequer teus pés lívidos. Gosto das tuas histórias. Gosto do teu coração…
O meu pequeno e inocente regato é uma capitania de navio… vogo num lago de lágrimas pela geografia da etérea literatura. E sonho com o caminho. Trabalho num sonho. Em volta de mim tudo é terra mirabilis. Em meio de mim nada arde tudo arde! Bebo da infantil e frágil face da humanidade ventosa… só as montanhas me assustam… só com elas me entendo…
(o meu pequeno regato é contudo…
… o mundo de todas as janelas as janelas de todos os mundos…)
Sabes que teus pés encerram todos os teus sonhos! Sabes que podes descalçar e correr areal… sabes que teus pés te podem içar ao navio e voar igualzinho ao andarilho… as tuas asas são os teus mundos… Do meu pequeno recanto! No meu pequeno recanto! Olho ao longe a brancura da noite e barulho ébrio no deserto de mescal…

É dessa ode que é um trevo que navegam todos os capitães e que cristalizam árvores para semear raízes…

e!

Destruir os muros destronar os guetos

e!


Loas de broa e lendas de linho … por sobre a mesa por todas as flores.


Texto que serviu de base à apresentação d'O Poço e d'O Elementos na Trama em Lisboa.


(discurso com alterações - !!deixei ficar os papéis com a Andreia!!)

A Rua!


Um espaço de tempo… um local imprudente… colchões amontoados por dentro de pinturas toscas… não num espaço de cidade não num espaço de subúrbio. Um espaço de toda a parte. Por toda a parte um mesmo espaço… Era a rua deserta! Quase uma rua bombardeada quase uma rua nua esburacada… sem ser na verdade uma rua…
então?...
também era um caleidoscópio de gentes, uma feira de emoções, um turbilhão de medos e angústias… poderia ser tombadilho de proa voltada para qualquer cardeal… fundamentalmente era um enredo… uma alma sentindo… um palanque falando…
e então? O que lá se via?...
um bando de pássaros cegos ganindo migalhas e salpicos de imagens que repicavam sinos e gonzos e nos molhavam a face… daquela rua quase deserta qualquer um poderia ver a vida! Pequeninos instantes fotográficos da vida. Da vida pequeninos… pequeninos vivos vivendo… bancos de jardim e olhos postos no cimento! Cores? Poucas! Quase sempre o cinzento. Luz? Pouca! Quase sempre o cinzento. Cheiros? Poucos! Quase sempre o cinzento…
Nuno Monteiro

Wonderful!! Wonderful!!

A Ruiva - Fialho de Almeida


“Dickens foi trabalhar aos doze anos para uma fábrica de cera; Genet foi acusado aos dez de roubo e enviado para uma Casa de Correcção. Fialho de Almeida, por sua vez, entrou aos catorze numa miserável botica ao largo do Mitelo, em Lisboa. Passava o dia a preparar venenos e à noite fechava-se num apertado vão de escada, nas traseiras da botica, onde dormia numa tábua rasa. Foi aí, nesse cubículo, à luz de uma vela, distraído de quando em quando por irritantes ratazanas, que Fialho fez a sua formação de escritor.”

António Cândido Franco, in Nota para o conto A Ruiva, Fialho de Almeida, Assírio e Alvim, 2005, colecção Beltenegros.

“-Nada de ajuntamentos aqui! Nada de ajuntamentos aqui! – E cada um foi para a sua banda, dando boas-noites. A triste espancada nem dava acordo de si. Corridas as primeiras curas das feridas, cada um foi dormir descansadamente e ninguém se lembrou de chamar o médico.
Sem o filho, sem uma pessoa que velasse por ela, a triste mulher revolvia-se nas enxergas, às escuras, em gemidos de dor e desvairamentos de febre.
E como de costume a manhã rompeu dali a cinco horas anunciando uma terça-feira de Inverno.

A Ruiva, Fialho de Almeida, edição Assírio e Alvim.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

A Rua


(...) A bondade é uma enorme construção fragilizada e de peruca – por debaixo da tão beata bondade jaz sempre uma cabeça careca imensa e um medo abrasador…


Noutro ponto da mesma rua uma rapariga de cabelos flamejantes. Acena os braços finos e sinaliza todos os faróis… Acaba de encontrar um menino selvagem esbracejando no lixo… e então a rapariga de cabelos ardentes. Olha enternecida enquanto preenche os papéis da adopção… sorri a rapariga dos cabelos (). Pega na papelada preenchida e


de sopetão que é só bravura


voa para o pé do trastezinho… aninha-se para o pé do menino… enternece de ternura uma multidão de infiéis! Carrega naquele momento todas as suas provas e
Quando lhe conta uma estória quando lhe sussurra ao ouvido sente os dentes rangendo sente a alma do menino em ebulição


E


Então ela não pára! Então ela não cessa! As sarças ardentes atingem as portas do céu… toda a água do mundo a inunda e a purifica


Porém


De repente o trastezinho move a face e (sem aviso)


Quando ela pressentia o beijo


Ei-lo de boca cheia de sangue! Ei-lo ganindo e fugindo … cospe o pedaço de carne da face da rapariga e nesse instante
Todo o fogo no cabelo morto (...)


Nuno Monteiro

sábado, 12 de setembro de 2009

João Palma Ferreira - os crânioclastas


"Foi quando nós entrámos. A luz abafada do fogo que morria pintava sombras na sala de frio.

Mas volto-me e vejo-o ainda sentado nos degraus do Monumento. O padre, de bronze, faz um aceno qualquer que ninguém decifrará, o gesto da estatuária inútil, a mesma que anda por aí há séculos abandonada em livros de antiquário. Vejo-o confusamente, como na sala do casino, como na praia nos vemos ou sob a amplidão fora do vidro fosco que sufoca ou abafa o nosso hálito. Curva-se interiormente no meu cérebro acompanhando a exacta concavidade dos ossos. Tento, em desespero, neste dormir opaco, tocá-lo, leve que seja, para lhe dizer como as palavras são necessárias entre os homens. Mas ele apenas se inclina com maior gravidade, recosta-se no cadeirão para escutar as frases estrangeiras que cavam túneis de horror pelo silêncio. Sinto, nos olhos, a prisão do tecto e do zimbório que cresce, de vidro, na torre em funil por onde as frases se escoam; logo, reflectidas, regressam à obsessão de que partiram.

Fujo. Voo pelo descampado até à praia. Sigo uma onda de viés, nos folhos da espuma, mar que varre toda a costa mais rápido do que eu. Em liberdade, grito-lhe palavras de júbilo (não há crima ainda) e projecto o som por entre nuvens, ecos em rosas de jardim ou murmúrios em memórias do quintal; falo da humidade nos recantos da casa e do silêncio cortado pelo pingar da água. No pano verde de todos os prados lanço, em glória, o prazer das apostas, reis e valetes, ases e espadas, copas e oiros. Desfecho, na serra, pela boca fria da espingarda, as dez balas de chumbo que retinem perdidas pelas fragas.

É quando chego, fatigado, a altas horas da noite. É a mesma porta, sempre. Os batentes castanhos. É quando rodo a chave. É quando entro. Aqui. É quando subo a rampa ao encontro da mulher de fogo e ácido que me espera, no chão varrido de neve, atrás do laranjal."

António Gedeão - Poema para Galileu

Jorge de Sena - Glosa de Guido Cavalcanti



'Perchi' I' no spero di tornar giammai'

Porque não espero de jamais voltar
à terra em que nasci; porque não espero,
ainda que volte, de encontrá-la pronta
a conhecer-me como agora sei

que eu a conheço; porque não espero
sofrer saudades, ou perder a conta
dos dias que vivi sem a lembrar;
porque não espero nada, e morrerei

no exílio sempre, mas fiel ao mundo,
já que de outro nenhum morro exilado;
porque não espero, do meu poço fundo,

olhar o céu e ver mais que azulado
esse ar que ainda respiro, esse ar imundo
por quantos que me ignoram respirado;

porque não espero, espero contentado."

Jorge de Sena

Retirado de : http://blogdaruaonze.blogs.sapo.pt/20141.html

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

El Carretero - Buena Vista Social Club

Não passarão


Não desesperes , Mãe!
O último triunfo é interdito
Aos heróis que o não são.
Lembra-te do teu grito:
Não passarão!

Não passarão!
Só mesmo se parasse o coração
Que te bate no peito.
Só mesmo se pudesse haver sentido
Entre o sangue vertido
E o sonho desfeito.

Só mesmo se a raiz bebesse em lodo
De traição e de crime.
Só mesmo se não fosse o mundo todo
Que na tua tragédia se redime.

Não passarão!
Arde a seara, mas dum simples grão
Nasce o trigal de novo.
Morrem filhos e filhas da nação,
Não morre um povo!

Não passarão!
Seja qual for a fúria da agressão,
As forças que te querem jugular
Não poderão passar
Sobre a dor infinita desse não
Que a terra inteira ouviu
E repetiu:
Não passarão!

Miguel Torga, Antologia Poética, Círculo de Leitores, 2001

Civilização ocidental


Latas pregadas em paus
fixados na terra
fazem a casa

Os farrapos completam
a paisagem íntima

O sol atravessando as frestas
acorda o seu habitante

Depois as doze horas de trabalho
escravo

Britar pedra
acarretar pedra
britar pedra
acarretar pedra
ao sol
à chuva
britar pedra
acarretar pedra

A velhice vem cedo
Uma esteira nas noites escuras
baste para ele morrer
grato
e de fome.

Agostinho Neto, Sagrada Esperança
Sá da Costa, Lisboa, 1974

Miles Davis

Aurora


As mãos grandes da broa do suor
Da mulher disforme e do trinado de luz
Do escuro da lareira e do avançado na noite
Os Golias do mar à mesa do luar
Percorre-os um frémito, calcorreia-os essa mesma vontade
Ouvi-os!
São grandes, ímpios de justiça
Partirão
Soltam as vozes com que comandam a madrugada
Erguem as taças e cumprimentam-se também
Cortam a broa e regam com mel
Ouvi-os
São lívidos de justiça, são das alturas do mar
Somem-se na refrega da primeira vaga
E entregam alvíssaras
Ulisses!
Estarei louco ou serão todos argonautas
Desapertam as cordas ao chegar da aurora
Berra o mestre do meio do mar
Padre nosso que estais no céu…

Nuno Monteiro

Foto: http://my.opera.com/tjfelix/blog/2008/02/25/o-porto-do-centro-da-invicta-ate-a-foz

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Os muros e os rios


Do sol veio o sal
E do sal surgiste tu
Vieste descalça como o vento
Chegaste defronte como ébano
Trazias cabelos flamejantes na noite
Sorrisos os olhos de um verde de mar
E nos olhos um sorriso

Chegaste comedida
Foste fogo foste lume que rasgou
Ficaste impressão indelével no espírito da terra
Tu, sal da minha vida
Ébano e tentação
Serás vida serás morte?

A morte não ri como tu
Do sol vem a vida
A morte não aquece nem se move como tu
Do sal só teus lábios
Dos teus pés descalços e das tuas sarças de fogo
Só o sal chora os muros e os rios
Nuno Monteiro

o autista e o sonho


Detestaria magoar! Mas tens que acordar! Tens que acordar dessa morte!
Do lado de lá um autista passeia indolente ao redor do quarto…
E serás capaz de me dizer porquê?
Há gente a passar fome… Há gente a morrer…

Mas não percebes! Não perceberás que foi exactamente esse o motivo que ditou o meu afastamento. Não percebes que essa mágoa é insuportável…

Mas por isso mesmo! Estão a recrutar! Toda a revolução está de novo em marcha… Gente que passa fome… é grande demais a injustiça!!
E o autista derrama chuva! E o autista derrama berros surdos! Nos olhos do autista… nos olhos do milagre! Nos olhos o martírio?!
Nuno Monteiro
Ilustração - Rogério Ribeiro

um terceiro sol


madrugada alta quase manhã clara à balaustrada dum precipício de cores... faço de mim um olhador de céus nuvens e odores... mantenho o olhar fixo na calma premonitória da floresta e do ar... Toda a minha vista alcança... sem subterfúgios... sem azedumes ou mentiras. Todo o restante mundo é estridente como os corvos. não este lugar. não este que é ... este lugar é calmo e belo. todos os dias amanhece um pintor diferente. Todos os dias imune ao bulício dos homens e das grandes urbes... todos os dias um sol diferente... um quadro vivo que move as cores e as salpica com outras histórias outros sentidos...

quão alvos os amanheceres! são sempre a esperança de um dia diferente... são sempre a saudável lembrança da mudança... do seu interior nasce serenidade... nasce crença...

uma ilusão apenas me confunde! quando abraço a árvore e lhe sussurro (). não deixarei que façam de mim louco...

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Eudora Welty


«Têm-me dito, como elogio e crítica, que pareço gostar das minhas personagens. Aquilo que faço quando escrevo sobre uma qualquer personagem é tentar entrar na mente, no coração e na pele de um ser humano que não sou eu. Quer se trate de um homem ou de uma mulher, velho ou novo, com pele negra ou branca, o principal desafio é o salto em si. O acto da imaginação de um escritor sobrepõe-se a tudo.»
Eudora Welty

http://relogiodaguaeditores.blogspot.com/

La Vie en Rose

este outro amanhecer


Na brisa deste novo dia confluem germes e outros animais da quinta… na ligeira brisa deste novo dia toda a quinta se levanta e se faz homem… na brisa deste novo dia cessam os movimentos dos pinheiros – quando se instalou a imobilidade? Desde quando cessou toda a actividade?
Lá longe por trás dos montes desenha-se a alvorada. Sargentos e bulícios despontam da soturna noite… o céu mostra-se sem cor. não há vermelho nem encarnado. Não há contornos de lilás. Não desponta amarelo algum. Lá longe por detrás da alvorada cresce um dia sem cor uma espécie de lama asfixiante…
As mesmas luzinhas acesas. Lutam para não esmorecer. Sabem que morrem a cada novo dia. Saberão? Sabem! A cada dia um pouco mais azedas. A cada dia pelo passar inexorável da desumana alma…
As nuvens como sombras desenham pelos céus malhas assustadoras… lembram o medo… lembrando ao homem quão homem ainda é! Semeiam escuridão por quase todo o lugar. Semeiam ignorância…
Os contornos mostram mãos e pés grotescos… lembram faces gastas feias. Não há um pingo de mel… todo o monte se prepara para a grotesca invernia. Mãos e pés grosseiramente grandes cavam caminhos e carreiros por onde o amor ()
No meio do tempo então um tiro ou um silvo… um gonzo ou um ribombar… e então abrem-se escancaradas as mil faces deste céu. O sol jorra agora fogo redentor… mas pelo meio dos bosques os gnomos correm a esconder-se.

É dum daguerreótipo… por sobre uma alvorada. Duns olhos que cegam submersos em medo… olhos sem as mãos ou as mãos esbracejando sem os olhos…

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Um lugar ao amanhecer



Há uma janela no quarto por onde ele olha o dia que só agora se mostra. Vê o céu em sangue que se espreguiça por entre uma espessa cortina de nuvens. Não tens vergonha!? Amanhece agora todos os instantes da imaginação e ele olha condoído a brisa fresca do novo dia que começa. Ainda salpicam as luzinhas da rua e dos postes. Das casas incumbem-se moradas e valentes… cruzam os céus por baixo das nuvens as aves iradas essas matizes voadoras. Por trás do sol nasce um vermelho belo áspero como a dor… o belo horrível encontram-se ali – por detrás daquele momento ao instante daquele lugar.
É o meu sol aquele sangue que só agora desponta. É esconso o dia daquele sol que se anuncia encarnado. Brilha intenso quando anuncia algo de novo. Lá longe por detrás dos montes por detrás da floresta. Adormecem os gnomos e escondem-se de novo
Impossível fazer palavras a retinir no que ele vê. Impossível fechar os olhos… agora a natureza morta deu lugar a uma vivacidade de luz e vibração. O dia nasceu. Por meio daquela pequena janela. Por meio das nuvens o sangue da luz cessa todo o encarnado e vai olhando para o amarelo… da terra e dos montes brota agora um matizado púrpura que eu sinto lilás!
Há uma janela por onde ele passa o dia!
Do meu lado do vidro mora um silêncio abrasador
É o meu sangue aquele sol que tão raro desponta! Em tão pouco lugar se derrama o dia…
“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

Prémio Histórico - Filosóficas